Os países comprometidos com o combate às mudanças climáticas estabeleceram metas equivocadas. E sabem disso
Jornal Estado de São Paulo, 6 de maio de 2007 - George Monbiot, THE GUARDIAN
Os países ricos que estão querendo impedir as mudanças climáticas têm em comum o seguinte - eles mentem. Vocês não encontrarão essa afirmação na minuta do novo relatório preparado pelo Comitê Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC - Intergovernmental Panel on Climate Change). Mas, assim que entender os números, terá a verdade diante dos olhos. Os governos que fazem esforços genuínos para lutar contra o aquecimento global usam números que sabem serem falsos.
O governo britânico, a União Européia e a ONU, todos alegam estar tentando impedir mudanças climáticas “perigosas”. Qualquer alteração climática é perigosa para alguém, mas há amplo consenso sobre o que essa expressão significa - 2 graus de aquecimento acima dos níveis pré-industriais. É perigoso por causa do seu impacto sobre as pessoas e os lugares (pode, por exemplo, desencadear um derretimento irreversível da cobertura de gelo da Groenlândia e o colapso da floresta tropical da Amazônia) e, como tende a estimular mais aquecimento, incentiva os sistemas naturais do mundo a liberar gases de efeito estufa.
O objetivo de impedir um aquecimento superior a 2°C foi adotado abertamente pela ONU e pela União Européia e implicitamente pelos governos britânico, alemão e sueco. Todos disseram esperar restringir a concentração de gases de efeito estufa na atmosfera a um nível que venha a impedir tal elevação. E todos eles sabem que estabeleceram metas erradas, baseadas em dados científicos obsoletos. Temerosos das implicações políticas, não ajustaram suas metas à exigência das novas pesquisas.
A temperatura média global é afetada pela concentração de gases de efeito estufa na atmosfera. Essa concentração é geralmente expressa como “o equivalente em dióxido de carbono”. Não é uma ciência exata - é impossível dizer que uma determinada concentração de gases resultará num determinado aumento da temperatura -, mas os cientistas tratam a relação em termos de probabilidade. Documento publicado em 2006 pelo climatologista Malte Meinshausen sugere que, se os gases de efeito estufa atingirem a concentração de 550 partes por milhão, em equivalente a dióxido de carbono, há uma chance de 63% a 99% (com uma média de 82%) de que o aquecimento global ultrapasse os 2 graus. Com 475 partes por milhão (ppm), a probabilidade média é de 64%. Apenas se as concentrações forem estabilizadas em 400 partes por milhão (ou menos) é que diminuem muito as chances (em média de 28%) de que as temperaturas se elevem em mais de 2 graus.
A minuta do relatório do IPCC contém números parecidos. Uma concentração de 510 ppm nós dá uma chance de 33% de impedir um aquecimento de mais de 2°C. Uma concentração de 590 ppm nós dá 10% de chance. Você começa a entender a proporção do desafio quando descobre que o nível atual de gases de efeito estufa na atmosfera (usando a fórmula da IPCC) é de 459 partículas por milhão. Ou seja, já ultrapassamos o nível seguro. Para nos dar a uma alta chance de impedir alterações climáticas perigosas, precisamos o quanto antes de um programa tão drástico que os gases de efeito estufa na atmosfera fiquem abaixo das concentrações atuais.
Mas nenhum governo se propôs a essa tarefa. A União Européia e o governo sueco estabeleceram a meta mais rigorosa do mundo. É de 550 ppm, o que nós dá uma quase certeza de mais 2°C. O governo britânico lança mão de truque de magia. Seu objetivo é também “550 partes por milhão”, mas 550 partes somente de dióxido de carbono. Quando incluímos os outros gases de efeito estufa, isso se traduz por 666 ppm, em equivalente ao dióxido de carbono . Segundo o relatório Stern do último outono sobre a economia da alteração climática, com 650 ppm, há uma chance de 60% a 95% de um aquecimento de 3°C. Noutras palavras, a meta do governo nos compromete com um nível muito perigoso de mudança climática.
Faz ao menos quatro anos que o governo britânico sabe que estabeleceu a meta errada. Em 2003, seu departamento de meio ambiente concluiu que “com uma estabilização de CO2 atmosférico de 550 ppm, a expectativa é que as temperaturas se elevem entre 2°C e 5°C”. Em março do ano passado, admitiu que “um limite próximo a 450 ppm ou mesmo mais baixo talvez seja mais apropriado para atender ao limite de estabilização em 2°C”. Mesmo assim, a meta não foi alterada.
A União Européia também sabe que está usando os números errados. Em 2005, descobriu que “para se ter uma oportunidade razoável de restringir o aquecimento global a não mais de 2°C, talvez seja necessária uma estabilização das concentrações bem abaixo de 550 ppm de equivalente em CO2. Mas seu alvo não foi mudado, também.
É constrangedor para o governo e para esquerdistas como eu o fato de que a única grande entidade política no Reino Unido que parece capaz de contestar isso é o Partido Conservador britânico, de oposição. Num documento publicado no mês passado, o partido exigiu uma meta de estabilização atmosférica de 400 ppm a 450 ppm de equivalente em CO2. Será que isso se transformará numa política do governo?
No meu livro Heat (Aquecimento), calculo que, para evitar o aquecimento de 2 graus, requer-se um corte das emissões globais de 60% per capita entre agora e 2030. Isso se traduz numa redução de 87% no Reino Unido. Uma meta muito mais rigorosa que a do governo britânico, que requer redução de 60% nas emissões no Reino Unido em 2050. Porém, meus cálculos parecem ter sido subestimados. Documento da revista Climatic Change ressalta que a sensibilidade das temperaturas globais às concentrações de gás efeito estufa permanece incerta. Mas, se usarmos o número médio, para termos 50% de chance de impedir um aquecimento superior a 2°C, é preciso uma redução global de 80% em 2050.
Esse é um corte no total das emissões, e não nas emissões per capita. Se a população mundial passar de 6 bilhões para 9 bilhões entre agora e 2050, precisaremos de uma redução das emissões globais de 87% por pessoa. Se as emissões de carbono forem distribuídas igualmente, o corte maior deve ser feito pelos maiores poluidores - nações ricas como nós. Assim, as emissões per capita do Reino Unido precisariam cair 91%.
Mas nossos governos parecem ter, disfarçadamente, abandonado sua meta de prevenir alterações climáticas perigosas. Se assim for, eles condenam milhões de pessoas à morte. O que o relatório da IPCC mostra é que temos que parar de tratar as mudanças climáticas como uma questão urgente. Temos que começar a tratá-las como uma emergência internacional.
Temos que abrir imediatamente negociações com a China, que ameaça se tornar a maior emissora de gases de efeito estufa do mundo em novembro próximo, em parte porque fabrica muitos dos produtos que compramos. Precisamos calcular quanto custaria para descarbonizar sua crescente economia e ajudar a pagar por isso. Precisamos de uma grande ofensiva diplomática, muito mais premente, para convencer os Estados Unidos a fazer o que fizeram em 1941 e transformar a economia. Mas, acima de tudo, temos que mostrar que continuamos levando a sério o combate às mudanças climáticas, estabelecendo as metas exigidas pela ciência.
Jornal Estado de São Paulo, 6 de maio de 2007 - George Monbiot, THE GUARDIAN
Os países ricos que estão querendo impedir as mudanças climáticas têm em comum o seguinte - eles mentem. Vocês não encontrarão essa afirmação na minuta do novo relatório preparado pelo Comitê Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC - Intergovernmental Panel on Climate Change). Mas, assim que entender os números, terá a verdade diante dos olhos. Os governos que fazem esforços genuínos para lutar contra o aquecimento global usam números que sabem serem falsos.
O governo britânico, a União Européia e a ONU, todos alegam estar tentando impedir mudanças climáticas “perigosas”. Qualquer alteração climática é perigosa para alguém, mas há amplo consenso sobre o que essa expressão significa - 2 graus de aquecimento acima dos níveis pré-industriais. É perigoso por causa do seu impacto sobre as pessoas e os lugares (pode, por exemplo, desencadear um derretimento irreversível da cobertura de gelo da Groenlândia e o colapso da floresta tropical da Amazônia) e, como tende a estimular mais aquecimento, incentiva os sistemas naturais do mundo a liberar gases de efeito estufa.
O objetivo de impedir um aquecimento superior a 2°C foi adotado abertamente pela ONU e pela União Européia e implicitamente pelos governos britânico, alemão e sueco. Todos disseram esperar restringir a concentração de gases de efeito estufa na atmosfera a um nível que venha a impedir tal elevação. E todos eles sabem que estabeleceram metas erradas, baseadas em dados científicos obsoletos. Temerosos das implicações políticas, não ajustaram suas metas à exigência das novas pesquisas.
A temperatura média global é afetada pela concentração de gases de efeito estufa na atmosfera. Essa concentração é geralmente expressa como “o equivalente em dióxido de carbono”. Não é uma ciência exata - é impossível dizer que uma determinada concentração de gases resultará num determinado aumento da temperatura -, mas os cientistas tratam a relação em termos de probabilidade. Documento publicado em 2006 pelo climatologista Malte Meinshausen sugere que, se os gases de efeito estufa atingirem a concentração de 550 partes por milhão, em equivalente a dióxido de carbono, há uma chance de 63% a 99% (com uma média de 82%) de que o aquecimento global ultrapasse os 2 graus. Com 475 partes por milhão (ppm), a probabilidade média é de 64%. Apenas se as concentrações forem estabilizadas em 400 partes por milhão (ou menos) é que diminuem muito as chances (em média de 28%) de que as temperaturas se elevem em mais de 2 graus.
A minuta do relatório do IPCC contém números parecidos. Uma concentração de 510 ppm nós dá uma chance de 33% de impedir um aquecimento de mais de 2°C. Uma concentração de 590 ppm nós dá 10% de chance. Você começa a entender a proporção do desafio quando descobre que o nível atual de gases de efeito estufa na atmosfera (usando a fórmula da IPCC) é de 459 partículas por milhão. Ou seja, já ultrapassamos o nível seguro. Para nos dar a uma alta chance de impedir alterações climáticas perigosas, precisamos o quanto antes de um programa tão drástico que os gases de efeito estufa na atmosfera fiquem abaixo das concentrações atuais.
Mas nenhum governo se propôs a essa tarefa. A União Européia e o governo sueco estabeleceram a meta mais rigorosa do mundo. É de 550 ppm, o que nós dá uma quase certeza de mais 2°C. O governo britânico lança mão de truque de magia. Seu objetivo é também “550 partes por milhão”, mas 550 partes somente de dióxido de carbono. Quando incluímos os outros gases de efeito estufa, isso se traduz por 666 ppm, em equivalente ao dióxido de carbono . Segundo o relatório Stern do último outono sobre a economia da alteração climática, com 650 ppm, há uma chance de 60% a 95% de um aquecimento de 3°C. Noutras palavras, a meta do governo nos compromete com um nível muito perigoso de mudança climática.
Faz ao menos quatro anos que o governo britânico sabe que estabeleceu a meta errada. Em 2003, seu departamento de meio ambiente concluiu que “com uma estabilização de CO2 atmosférico de 550 ppm, a expectativa é que as temperaturas se elevem entre 2°C e 5°C”. Em março do ano passado, admitiu que “um limite próximo a 450 ppm ou mesmo mais baixo talvez seja mais apropriado para atender ao limite de estabilização em 2°C”. Mesmo assim, a meta não foi alterada.
A União Européia também sabe que está usando os números errados. Em 2005, descobriu que “para se ter uma oportunidade razoável de restringir o aquecimento global a não mais de 2°C, talvez seja necessária uma estabilização das concentrações bem abaixo de 550 ppm de equivalente em CO2. Mas seu alvo não foi mudado, também.
É constrangedor para o governo e para esquerdistas como eu o fato de que a única grande entidade política no Reino Unido que parece capaz de contestar isso é o Partido Conservador britânico, de oposição. Num documento publicado no mês passado, o partido exigiu uma meta de estabilização atmosférica de 400 ppm a 450 ppm de equivalente em CO2. Será que isso se transformará numa política do governo?
No meu livro Heat (Aquecimento), calculo que, para evitar o aquecimento de 2 graus, requer-se um corte das emissões globais de 60% per capita entre agora e 2030. Isso se traduz numa redução de 87% no Reino Unido. Uma meta muito mais rigorosa que a do governo britânico, que requer redução de 60% nas emissões no Reino Unido em 2050. Porém, meus cálculos parecem ter sido subestimados. Documento da revista Climatic Change ressalta que a sensibilidade das temperaturas globais às concentrações de gás efeito estufa permanece incerta. Mas, se usarmos o número médio, para termos 50% de chance de impedir um aquecimento superior a 2°C, é preciso uma redução global de 80% em 2050.
Esse é um corte no total das emissões, e não nas emissões per capita. Se a população mundial passar de 6 bilhões para 9 bilhões entre agora e 2050, precisaremos de uma redução das emissões globais de 87% por pessoa. Se as emissões de carbono forem distribuídas igualmente, o corte maior deve ser feito pelos maiores poluidores - nações ricas como nós. Assim, as emissões per capita do Reino Unido precisariam cair 91%.
Mas nossos governos parecem ter, disfarçadamente, abandonado sua meta de prevenir alterações climáticas perigosas. Se assim for, eles condenam milhões de pessoas à morte. O que o relatório da IPCC mostra é que temos que parar de tratar as mudanças climáticas como uma questão urgente. Temos que começar a tratá-las como uma emergência internacional.
Temos que abrir imediatamente negociações com a China, que ameaça se tornar a maior emissora de gases de efeito estufa do mundo em novembro próximo, em parte porque fabrica muitos dos produtos que compramos. Precisamos calcular quanto custaria para descarbonizar sua crescente economia e ajudar a pagar por isso. Precisamos de uma grande ofensiva diplomática, muito mais premente, para convencer os Estados Unidos a fazer o que fizeram em 1941 e transformar a economia. Mas, acima de tudo, temos que mostrar que continuamos levando a sério o combate às mudanças climáticas, estabelecendo as metas exigidas pela ciência.
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