24 de abril de 2008

A Nossa TV: a volta do café com leite?

Por Alexandre Leboutte da Fonseca* - Coletiva.Net
Foi com um certo desconforto que li os quatro parágrafos do artigo publicado no Coletiva.net pelo ex-presidente da Fundação Piratini, Flávio Dutra, sob o título “A nossa TV”. Sendo assim, achei importante expor algumas considerações a fim de clarear pontos que me pareceram turvados pelo envolvimento político-partidário de Dutra.

Para ser mais didático, separo minhas impressões de acordo com as idéias contidas em cada um dos quatro parágrafos do referido texto. Vejamos o primeiro: Flávio Dutra demonstra sua preocupação com a situação da
TVE e da FM Cultura e estranha um governo com mais de 15 meses estar formando mais um grupo de trabalho, o terceiro conforme Flávio, para estudar e propor soluções para as emissoras.
Até aqui, percebo que o ex-presidente expõe uma preocupação compartilhada pela maioria de nós que trabalhamos nas emissoras. De minha parte, fiquei impressionado com o fato de um profissional como ele, com bom trânsito nos meios político-partidários, especialmente os que compõem o atual governo do Estado, tornar pública a ausência de interlocução sua com o Executivo gaúcho. Mas o acesso ao núcleo duro do governo Yeda parece limitado até mesmo a muitos componentes do próprio governo (estou errado, Secretaria da Cultura?), o que parece elevar o grau de ineficiência desta gestão.

O ponto problemático de seu artigo está, entretanto, no segundo
parágrafo, quando se declara simpático às OSCIPs (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público) e dirige elogios ao exemplo da TV Minas. Porém, devemos perdoar Dutra por ser atraído pelo canto da sereia, sem ter acessado os dados da “oscipização” da TV mineira.
Dois dados são elementares para entendermos o “$uce$$o” da oscipização daquela emissora. O primeiro deles pode ser conferido na página da Secretaria de Planejamento do estado de Minas Gerais (www.planejamento.mg.gov.br). O orçamento da Fundação TV Minas Cultural e Educativa para o exercício de 2005 foi de R$ 7.117.619,00, sendo R$ 4.275.698,00 oriundos de “Recursos Diretamente Arrecadados” (recursos captados no mercado, através de apoio cultural e patrocínio de projetos), e apenas R$ 2.841.921,00 repassados pelo Tesouro do Estado.
Como pode ser visto na tabela abaixo, os recursos do Tesouro mineiro repassados para a TV Minas subira
m 343,6% após ser assumida por uma OSCIP. Uma pergunta parece óbvia: por que ceder o patrimônio público para entidades privadas e só então aumentar exponencialmente o repasse de recursos públicos? É, no mínimo, preocupante, pois essas entidades usam os recursos na aquisição de bens e serviços sem realizarem licitação pública ou pregão eletrônico e/ou presencial, enfim, sem controle público.
O segundo dado diz respeito ao quadro de pessoal: dos cerca de 400 funcionários da TV Minas, em 2005, só 30 pertenciam ao quadro efetivo. Os outros 370 eram “quarteirizados”, isto é, eram contratados sem concurso público através da Fundação Renato Azeredo, que subcontratava a Cooperativa de Serviços e Marketing – Markcoop. Uma ação do Ministério Público do Trabalho exigiu a rescisão dos contratos e a realização de concurso público. O concurso foi feito mas logo foi anulado devido a irregularidades. Quando Aécio Neves assumiu o governo, em vez de fazer um novo concurso, cedeu a TV Minas a uma OSCIP, a ADTV, que acabou por contrata
r aqueles trabalhadores apontados como irregulares pelo MPT. Vale lembrar que a Rádio Inconfidência, também pertencente ao governo mineiro, tem cerca de 150 servidores do quadro efetivo e continua uma empresa pública, sem ter sido entregue a uma OSCIP.
No terceiro parágrafo, Flávio Dutra acerta ao elogiar a vocação de nossas emissoras, “de serem expressões da nossa cultura e de atenderem segmentos de público desprezados pelas redes comerciais”. Acerta também (salvando exceções) ao cobrar da omissão de setores beneficiados pelo trabalho das mesmas. Depois, chama a atenção de ex-diretores para a “defesa” da TVE e da FM Cultura. Devemos ponderar: se for para entregá-las para uma OSCIP, isto é, privatizá-las, eu preferiria que mantivessem o silêncio. Porém, obviamente sabemos que é no debate que se constroem as soluções, dentro do espírito de um Estado Democrático de Direito, que tem entre seus pilares a livre circulação de manifestações e idéias. Entretanto, sabemos que o debate público é hoje
organizado, em sua maior parte, pelos grandes conglomerados de comunicação, resultando em um espaço assimétrico, com alguns atores sociais privilegiados na veiculação de seus discursos, em detrimento de outros propositalmente desprestigiados. Portanto, que se dê voz aos ex-presidentes, mas também aos trabalhadores das emissoras.
Já no quarto parágrafo, o senhor Flávio Dutra, por quem nutro sincera simpatia, demonstra um erro de interpretação ao afirmar que “esforços” com “interesses outros” querem “atrelar a TVE à TV Brasil, do governo federal, sem necessárias contrapartidas”. O termo “atrelar” parece mais apropriado de ser usado para uma linha de trem (ô trem bão!), onde os vagões estão uns atrelados aos outros, puxados pela máquina principal. Não é o caso do que vêm sendo discutido aqui no estado por funcionários da TVE e FM Cultura, sindicatos de jornalistas e radialistas, Conselho Deliberativo da Fundação
Piratini, Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, Assembléia Legislativa, Fórum em Defesa do Patrimônio e dos Serviços Públicos, alguns partidos políticos, enfim, por um contingente expressivo de atores sociais do Rio Grande do Sul. No que tange à TV Brasil/EBC (Empresa Brasil de Comunicação), o que se tem pedido ao governo do estado é que participe das reuniões de organização da Rede Brasil, uma rede de emissoras do campo público com potencial de benefícios mútuos. Não pode nosso estado ser o único da federação que não participa das reuniões do Comitê de Rede da TV Brasil e da Abepec (Associação Brasileira de Emissoras Públicas Educativas e Culturais). Outros estados brasileiros governados pelo PSDB têm feito acordos de programação com a TV Brasil, como na TV Cultura de São Paulo e na TV Minas.
Sabemos da possibilidade de recebermos recursos para digitalização do acervo de imagens da TVE, parte da memória do Rio Grande hoje em franca decomposição. Haverá fomento à produção independente
local, verbas para qualificação de programas que vierem a integrar a rede nacional, flexibilidade para estabelecimento da grade de programação, capacidade de recebermos coberturas especiais e matérias jornalísticas diárias de todo Brasil, não só de São Paulo, e enviar para todo Brasil nossas produções.
O que se quer é que o governo do estado dialogue com o governo federal. Tem autonomia e legitimidade para isso. Só falta vontade política. Yeda não tem elementos para dizer se uma parceria com a EBC/TV Brasil é boa ou ruim simplesmente porque até hoje nenhum integrante do governo participou de qualquer negociação nem das muitas reuniões de trabalho que acontecem pelo Brasil. Enquanto isso, a grade de programação da TVE está cada vez mais paulista. Levantamento realizado no período de 7 a 13 de abril deste ano pela
Comissão de Programação do Conselho Deliberativo da Fundação Piratini apurou que a programação da TVE está distribuída da seguinte forma: a) 64,09% são de retransmissão de programas da TV Cultura de São Paulo; b) 21,62% são de produção própria inédita; c) 14,29% são de produção própria reprises e/ou horários alternativos.
A comissão deverá ampliar o levantamento, com o intuito de acompanhar as alterações na programação da TVE nos últimos anos. Entre os funcionários das emissoras, já ouvimos de interlocutores com algum acesso à periferia do governo Yeda comentários do tipo “a TVE não vai ajudar a TV do Lula”. Se tivéssemos a mesma visão pequena, poderíamos dizer que a TVE não deveria ajudar tanto a TV do Serra. Mas sabemos que a TV e a rádio públicas estão muito além dos governantes da hora.
* Alexandre Leboutte da Fonseca é jornalista, representante dos funcionários da TVE e da FM Cultura no Conselho Deliberativo da Fundação Piratini.

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