O texto abaixo só prova o quanto os movimentos contra-hegemônicos e os deserdados da terra estão na vanguarda da crítica ao capitalismo. Já não são mais os partidos da esquerda institucionalizada que fazem a crítica e o enfrentamento ao modelo dominante. Quem tem as bandeiras do futuro, são os que defendem a segurança alimentar, os pequenos produtores, as formas alternativas de produção, a economia solidária e a democratização das comunicações. Esses têm a chave do futuro. Não os deslumbrados, como Lula, que vive a fantasia de abastecer o mundo com bio-combustível produzido dentro do paradigma capitalista do agro-negócio.
Ao final do texto, Figeuiredo lança uma dúvida inquietante sobre qual modelo que prevalecerá no momento de transição de fase apontada pelo texto: o modelo dos "deserdados" ou o modelo implementado bem abaixo do nosso nariz, a base de muita corrupção e cacetadas.
Estas considerações valem também para as ciências sociais. A humanidade parece estar prestes a entrar numa gigantesca transição de fase. Isto significa que o mundo que conhecemos deixará de ser como é hoje. Não me refiro ao possível colapso do modo de produção capitalista, para o qual não se podem marcar datas. Refiro-me a outro fenómeno, de natureza física e para o qual se podem prever datas de modo razoavelmente preciso. Trata-se de outro colapso: o da morte, já anunciada, do petróleo. Isto marca o fim de uma era.
Os dados do problema são razoavelmente conhecidos, graças sobretudo a importantes trabalhos de investigação como os de Collin Campbell, Jean Laherrère e outros. O petróleo recuperável é um recurso finito e a humanidade já atingiu ou está prestes a atingir o pico da sua produção. A curva inventada pelo grande geofísico norte-americano King Hubber, a Curva de Hubbert, é inexorável. A partir do pico, daí em diante, a produção declinará assintoticamente até chegar ao final. O fim do petróleo está, assim, no horizonte. É impossível que por um tempo indefinido a humanidade continue a gastar loucamente, tal como agora, 82 milhões de barris/dia (=~30 x 10 9 barris/ano).
Não me preocuparei, aqui, em descrever os dados quantitativos relativos a estes problemas. Hoje — apesar da muralha de silêncio erguida durante muitos anos por governos, monopólios petroleiros e organizações tais como a Agência Internacional de Energia, a União Europeia, etc — começa a haver literatura de bom nível a respeito. Quem quiser estudá-la dispõe dos trabalhos da Association for Study of Peak Oil (ASPO) , do Oil Depletion Analysis Centre (ODAC) , de Jay Hanson e de outros investigadores. O foco desta comunicação não é repetir aquilo que já foi dito e sim uma tentativa de imaginar, em termos qualitativos, as possíveis consequências para a humanidade da transição entre a era do petróleo e uma outra era que, na falta de melhor definição, chamaremos do pós-petróleo. Tal transição é ainda mais complicada pela actual fase do capitalismo, que poderíamos chamar de senil, em que este adquire um carácter predatório e de uma irracionalidade absoluta quanto a fins (embora possa ser racional para atingir fins irracionais).
Admitamos que o fim do petróleo seja para, digamos, daqui a 50 anos (para efeitos desta análise, não importa se um pouco mais ou um pouco menos pois isso não iria alterá-la). Imaginemos então o raciocínio de um desses yuppies forjados pela ideologia neoliberal, indivíduos extremamente individualistas e imbuídos de um forte egoísmo — geracional inclusive. Se este yuppie for for mal informado, ele encolherá os ombros e dirá: pouco importa, isso não afecta a mim nem à minha geração e será um problema para os vindouros. Trata-se no entanto de um gravíssimo erro, fruto da ignorância deste yuppie curto prazista. Na verdade, os efeitos do fim da era do petróleo far-se-ão sentir muito antes de o último barril ter sido extraído da terra. Eles poderão ser experimentados em prazos tão curtos como meia dúzia de anos (pois muitos analistas consideram que a Curva de Hubbert está agora num plateau que será rompido por volta de 2008).
A primeira consequência a ser sentida manifestar-se-á da forma mais óbvia, com a actuação da tesoura dos preços. Ali Bakhtiar, investigador iraniano e criador do modelo World Oil Production Capacity (WOCAP), estima que dentro de dois anos (até 2006) o preço do barril poderia atingir os US$125. Ou seja, uma previsão de triplicação do preço actual do barril mesmo antes do fim do "planalto" previsto para 2008.
Outra consequência que, apesar da enxurrada de desinformação despejada pelas organizações internacionais e pelos media corporativos, quase toda a gente percebe de imediato é ao nível geopolítico. O início do fim do petróleo intensifica a luta do imperialismo para se apossar das últimas reservas remanescentes no planeta. A guerra de conquista que se trava agora no Afeganistão e no Iraque, a ameaça de outras (Irão, Colômbia, Ásia Central, etc), a tomada de controle das reservas de outros países (África, América Latina), etc, a rivalidade entre o imperialismo americano e o sub-imperialismo europeu, o peso relativo da produção da OPEP versus o da não-OPEP, etc, tudo isso está a acontecer diante de nós neste momento (o défice de compreensão disto entre milhões de pessoas do mundo deve-se à desinformação dos media corporativos). No entanto, a dimensão geopolítica do problema já é razoavelmente conhecida e a opinião pública qualificada compreende-a bem. Há, no entanto, outras espécies de consequências, talvez mais fundas, que não são imediatamente perceptíveis. Refiro-me ao actual modelo mundial de produção e de distribuição de mercadorias .
Comecemos pelo lado da distribuição. Desde Adam Smith elaborou-se o programa — digo muito bem, "programa" e não "teoria" — da divisão internacional do trabalho. Ele vem sendo aplicado há um par de secúlos. Durante as décadas do pós-guerra o Banco Mundial e o FMI impuseram uma divisão internacional que forçava os países subdesenvolvidos a se especializarem na produção de determinados produtos a fim de exportarem e assim obterem divisas duras para pagar: 1) o serviço da dívida; 2) o consumo perdulário das suas classes dominantes locais e 3) a importação de comida para os seus povos. Com base nessa política, tais países abandonaram (ou foram forçados a abandonar) preocupações com a auto-suficiência alimentar. Argumentava-se que era mais barato importar os alimentos do que produzi-los internamente. Assim, inúmeros países da África e América Latina especializaram-se nas produções de exportação (agrobusiness, petróleo, café, carne, minérios metálicos, frutas, etc) e deixaram de estar em condições de alimentar as suas próprias populações. Nessa altura, será de perguntar, o que acontecerá quando a alta dos custos dos transportes internacionais puser em causa o actual modelo globalizado de distribuição, em que as mercadorias têm de vencer distâncias de milhares de quilómetros? O que acontecerá quando o custo da tonelada transportada se tornar astronómico? Tudo indica que ele será posto em causa, pois não será sustentável. O que aconteceria então? Uma resposta tentativa: Seria de prever um retorno à teoria — provada ao longo de milénios — da auto-suficiência alimentar dos países. Trata-se de teoria intuitiva e cheia de bom senso que foi brutalmente destruída pelo capital (Cuba, com a sua experiência pós-1989, poderia nessa altura dar lições ao mundo). Mas terá este sistema a inteligência, a racionalidade e a vontade de promover uma tal alteração que vai ao arrepio das teorias em vigor e dos interesses dominantes? Um eventual retorno à filosofia da auto-suficiência alimentar significaria, só por si, uma autêntica revolução nas relações de distribuição oligopolizadas que regem o mundo de hoje. É de prever que o capital monopolista combata ferozmente tal saída, fazendo todo o possível e imaginável para impedir a adopção de tal caminho.
O problema do transporte será verdadeiro igualmente no plano da distribuição dentro de cada país. Até mesmo com preços do barril a nível "normal" actualmente já há países na África que não dispõem de recursos sequer para importar refinados de petróleo. Tal situação poderá estender-se a outros países não-produtores de petróleo, africanos ou não. Pode-se imaginar que as dificuldades de transporte tendam a levar a localismos da produção dentro de cada país, com prováveis retrocessos iniciais a nível da produtividade (métodos mais primitivos, etc). As relações cidade-campo ficarão igualmente afectadas, o campo terá dificuldade em alimentar as cidades "inchadas" do mal chamado Terceiro Mundo.
Do lado da produção, as consequências têm um carácter tão multifacético e complexo que é difícil prever o que poderia vir a ser a resultante final. Ainda que sumariamente, sem pretender fazer futurologia, podem-se imaginar algumas das possíveis consequências:
Na agricultura, verifica-se que a de tipo intensivo (o chamado agrobusiness) repousa em inputs que tem origem no petróleo — é o caso dos fertilizantes azotados, dos pesticidas e fungicidas, do combustível para a maquinaria agrícola, etc. Assim, a escassez do petróleo tenderá a reduzir a produtividade do trabalho e o rendimento proporcionado pela terra. E isto ocorreria com mais intensidade em terras "velhas", que há muitas gerações estão a produzir e cuja fertilidade só pode ser reposta por meios artificiais. Há quase 200 anos a humanidade está a retirar fertilizantes da terra e a lançá-los fora nos esgotos das cidades.
No caso da agricultura de pequena escala o panorama, naturalmente, seria menos grave do que na primeira. No entanto, falta saber em que medida poderia esta produzir um excedente suficiente para repor as perdas da intensiva. As relações de propriedade certamente terão de mudar para permitir o acesso à terra a milhões de novos agricultores.
São admissíveis igualmente consequências demográficas, tanto a nível da taxa de crescimento populacional como da distribuição espacial das populações — uma des-urbanização, com um retorno ao campo a fim de cultivar a terra. A proporção actual dos países desenvolvidos, em que 10% da população alimenta os 90% restantes, provavelmente não poderá ser mantida. Mais gente terá de dedicar-se à agricultura.
A indústria será afectada de modo directo, principiando naturalmente pelas mais "energívoras". A obsolescência de parte do parque industrial mundial será uma possibilidade forte, com o sucateamento de muitas delas (refinarias de petróleo, fábricas de veículos convencionais, etc). Será de admitir o surgimento de tipos de indústrias mais pequenas e energeticamente mais auto-suficientes, na linha preconizada por Schumacher. Não será, portanto, uma volta ao passado histórico pois agora a humanidade dispõe de um acervo de conhecimentos adquiridos que pode ser posto ao serviço da produção em novos moldes (a electrónica é pouco devoradora de energia e pode ser posta ao serviços da produção). Parece certo o desenvolvimento das energias renováveis (solar térmica e fotovoltaica, eólica, marés, ondas, geotérmica, hidroeléctrica, biogás e biomassa, etc), do gás natural (cuja Curva de Hubbert é mais aplainada, mais extensa no tempo e tem um pico menos bem definido) e do nuclear. Parecem menos certas as perspectivas do tão apregoado hidrogénio uma vez que este não é uma fonte primária de energia (os seus defensores, como Rifkin e a União Europeia, ainda não explicaram de onde poderá ele ser extraído, a custos comportáveis, quando acabar o gás natural e o petróleo — para obter hidrogenio da água também se gasta energia!).
Estas pinceladas rápidas, têm um carácter meramente impressionista a fim de dar uma ideia da Transição de Era que está por vir. São apenas exemplos de alterações que podem suceder-se. Mas sejam quais forem elas, a certeza é de que inelutavelmente irão verificar-se enorme alterações no modo de produção e distribuição planetário e nada será como dantes.
Temos portanto uma crise anunciada e até datada (muitos analistas prevêem o fim do actual "planalto" da Curva de Hubbert por volta de 2008) e outra anunciada mas não datada: o possível desenlace da crise do modo de produção capitalista num (sempre adiado) colapso sistémico.
Os temas aflorados acima constituem modificações que se podem considerar mais gigantescas do que a Revolução Industrial no século XIX, com a invenção da máquina a vapor. Esta foi uma Revolução muito localizada no espaço (Grã-Bretanha) e que só muito lentamente, ao longo de mais de cem anos, difundiu-se pelo resto do mundo (mesmo assim nem todo, pois ainda hoje a industrialização não chegou a imensas áreas do mundo). Em contra-partida, o fim da Era do Petróleo afectará o mundo todo e de uma forma síncrona: a escassez de petróleo atingirá todos e ao mesmo tempo.
Estamos a falar de alterações decisivas para o futuro da humanidade, que comprometem a sua existência. Por isso, é espantoso que a maior parte dos responsáveis — a começar pelos ditos "estadistas" (se ainda existem), pelos media e por entidades como a Agência Internacional de Energia da OCDE — ignore um problema desta escala e desta magnitude, um problema que põe em causa as bases de funcionamento da sociedade. Pior: muitas vezes tal problema não só é ignorado como é também negado, numa autêntica política do avestruz.
Durante anos a fio os monopólios petroleiros, organizações estatais (como o US Geological Survey), organizações internacionais (como o Banco Mundial, a AIE da OCDE, etc) pura e simplesmente ignoraram ou fingiram ignorar o problema a fim de não contrariar os interesses estabelecidos. Para indivíduos imbuídos da ideologia neoliberal, a actuação predatória sobre os recursos naturais em benefício do capital é algo "normal". É assim que se dizimam de modo irreversível as florestas do mundo todo, que se esgotam os lençóis freáticos de água doce, que se contaminam terras e águas com explorações mineiras e outras, que se esgotam bancos pesqueiros com capturas que não permitem a reposição de stocks, etc, etc — e que se dizima o petróleo de uma forma bárbara ao ritmo de 82 milhões de barris/dia (4,1 mil milhões de toneladas/ano). A nova moda nos EUA são os chamados Sport Utility Vehicles (SUVs), potentes monstros bebedores de gasolina em escala jamais vista antes.
Mas as evidências de esgotamento que se acumularam foram tantas que aqueles que preferiam ignorar o problema tiveram de ensaiar respostas. Surgiram assim os "negacionistas", com as suas falácias. Uma das espécies de negacionistas é a dos economistas vulgares, de visão curta mas cheios de certezas dogmáticas. O seu negacionismo repousa na teoria neoclássica. Dizem eles que o deus mercado tudo regulará, pois trata-se apenas uma questão de preços. Assim, se a procura ultrapassar a oferta haverá "simplesmente" um reajustamento de preços. Isto significa que aqueles que puderem pagar os novos preços poderão continuar a queimá-lo de forma perdulária. Mas eles nada dizem o que se passaria quanto aos outros que não puderem pagar muitas vezes mais o preço actual — os quais constituirão a maior parte da espécie humana. Os exemplos actuais de pauperização de continentes inteiros (África, América Latina) não auguram nada de bom.
Outro tipo de negacionista é o dos que ostentam uma fé ilimitada no progresso tecnológico. Tal tipo de negacionista é muito frequente sobretudo entre aqueles que nada sabem de ciências, mas transferem para esta a resolução do problema. Este tipo de negacionista é muito encontrável entre políticos, sobretudo chefes de Estado. A sua vontade de conhecer os problemas reais já não é muito grande e, além disso, organizações internacionais como a União Europeia e a OCDE contribuem para mistificá-los — e por vezes induzem-nos à adopção de soluções equívocas mas que favorecem interesses de monopólios. Na verdade não há soluções tecnológicas prontas que possam no médio prazo e em grande escala vir a substituir o petróleo. Aqueles que dizem não pretender a gasolina e sim o "serviço" proporcionado pela gasolina e que o mesmo serviço poderia ser proporcionado por menor quantidade de gasolina (ou por outro combustível alternativo) estão a cair na utopia tecnológica. E aqueles que falam na pseudo-solução dos biocombustíveis auto-enganam-se com esta falácia pois, mesmo sem pensar nos custos, a terra agriculturável não é infinita.
Ainda há outros tipos de negacionistas, como aqueles que acreditam piamente (ou fingem acreditar) nas estatísticas públicas sobre reservas provadas, prováveis e possíveis, descobertas, produções, etc. Mas grande parte dessas estatísticas tem de ser expurgada de dados espúrios, introduzidos em função dos interesses daqueles que as produzem. Talvez acordem quando se revelarem verdades escondidas durante muito tempo, como por exemplo que o maior campo de petróleo do mundo (Ghawar, na Arábia Saudita) já atingiu o seu pico e, mesmo utilizando técnicas de recuperação secundária, principia a declinar. Ou que a fase de declínio já atingiu igualmente o segundo maior campo do mundo (Cantarell, no México), cuja produção principiou em 1979.
Camaradas e amigos:
Não tenho gosto em ser Cassandra. Não pretendo fazer terrorismo energético. Pretendo apenas despertar as atenções para um problema que, até agora e na generalidade, tem sido silenciado. A humanidade tem o direito e o dever de ser informada do que está para acontecer. O debate precisa ser lançado. A confluência da crise do capitalismo na sua fase senil com a crise do petróleo não poderá deixar de ter repercussões fortíssimas sobre a humanidade. Mas não está pré-determinado como será o desenlace destas crises. Há muitas soluções possíveis e factíveis, há muitos futuros possíveis. Se o actual modo de produção e distribuição fosse racional e justo, tentaríamos poupar ao máximo o petróleo ainda existente e efectuar de modo tão suave quanto possível a transição para o mundo pós-petróleo. Mas o modo de produção e distribuição capitalista nada tem de racional nem de justo. Assim, são de prever grandes embates entre povos do mundo todo e os monopólios que os dominam. Em alguns lugares do mundo surgirão situações revolucionárias, mas elas só poderão ser aproveitadas se os povos e as suas vanguardas estiverem preparados para a ruptura com o imperialismo e a tomada do poder — caso contrário, será o imperialismo a impor as suas "soluções", com um carácter retrógrado e agravador dos problemas. Trata-se de uma corrida contra o tempo. O desenlace terá um carácter revolucionário ou fascizante. O desafio é terrível. Para enfrentá-lo é imperioso elevar o nível de consciência daquilo que está em causa. Posições recuadas e "possibilismos" só levam à derrota.[*] Comunicação ao Encontro Internacional "Civilização ou Barbárie", Serpa, 23-25/Set/2004.
Ver também, do mesmo autor, A mudança para um novo paradigma energético . Ao final do texto, Figeuiredo lança uma dúvida inquietante sobre qual modelo que prevalecerá no momento de transição de fase apontada pelo texto: o modelo dos "deserdados" ou o modelo implementado bem abaixo do nosso nariz, a base de muita corrupção e cacetadas.
*Por Jorge Figueiredo
As transições de fase são sempre críticas. Nos momentos das transições as leis a que estamos habituados deixam de funcionar e os fenómenos adquirem comportamentos inusitados. Durante a passagem da água do estado líquido para o gasoso as leis que actuam já não são as da física do estado líquido nem tão pouco as do estado gasoso. São outras, não tão bem conhecidas. E, de um ponto de vista antropomórfico, aparece-nos como caos aquilo que não tem leis que conheçamos e onde a previsibilidade (mesmo estatística) fica comprometida.Estas considerações valem também para as ciências sociais. A humanidade parece estar prestes a entrar numa gigantesca transição de fase. Isto significa que o mundo que conhecemos deixará de ser como é hoje. Não me refiro ao possível colapso do modo de produção capitalista, para o qual não se podem marcar datas. Refiro-me a outro fenómeno, de natureza física e para o qual se podem prever datas de modo razoavelmente preciso. Trata-se de outro colapso: o da morte, já anunciada, do petróleo. Isto marca o fim de uma era.
Os dados do problema são razoavelmente conhecidos, graças sobretudo a importantes trabalhos de investigação como os de Collin Campbell, Jean Laherrère e outros. O petróleo recuperável é um recurso finito e a humanidade já atingiu ou está prestes a atingir o pico da sua produção. A curva inventada pelo grande geofísico norte-americano King Hubber, a Curva de Hubbert, é inexorável. A partir do pico, daí em diante, a produção declinará assintoticamente até chegar ao final. O fim do petróleo está, assim, no horizonte. É impossível que por um tempo indefinido a humanidade continue a gastar loucamente, tal como agora, 82 milhões de barris/dia (=~30 x 10 9 barris/ano).
Não me preocuparei, aqui, em descrever os dados quantitativos relativos a estes problemas. Hoje — apesar da muralha de silêncio erguida durante muitos anos por governos, monopólios petroleiros e organizações tais como a Agência Internacional de Energia, a União Europeia, etc — começa a haver literatura de bom nível a respeito. Quem quiser estudá-la dispõe dos trabalhos da Association for Study of Peak Oil (ASPO) , do Oil Depletion Analysis Centre (ODAC) , de Jay Hanson e de outros investigadores. O foco desta comunicação não é repetir aquilo que já foi dito e sim uma tentativa de imaginar, em termos qualitativos, as possíveis consequências para a humanidade da transição entre a era do petróleo e uma outra era que, na falta de melhor definição, chamaremos do pós-petróleo. Tal transição é ainda mais complicada pela actual fase do capitalismo, que poderíamos chamar de senil, em que este adquire um carácter predatório e de uma irracionalidade absoluta quanto a fins (embora possa ser racional para atingir fins irracionais).
Admitamos que o fim do petróleo seja para, digamos, daqui a 50 anos (para efeitos desta análise, não importa se um pouco mais ou um pouco menos pois isso não iria alterá-la). Imaginemos então o raciocínio de um desses yuppies forjados pela ideologia neoliberal, indivíduos extremamente individualistas e imbuídos de um forte egoísmo — geracional inclusive. Se este yuppie for for mal informado, ele encolherá os ombros e dirá: pouco importa, isso não afecta a mim nem à minha geração e será um problema para os vindouros. Trata-se no entanto de um gravíssimo erro, fruto da ignorância deste yuppie curto prazista. Na verdade, os efeitos do fim da era do petróleo far-se-ão sentir muito antes de o último barril ter sido extraído da terra. Eles poderão ser experimentados em prazos tão curtos como meia dúzia de anos (pois muitos analistas consideram que a Curva de Hubbert está agora num plateau que será rompido por volta de 2008).
A primeira consequência a ser sentida manifestar-se-á da forma mais óbvia, com a actuação da tesoura dos preços. Ali Bakhtiar, investigador iraniano e criador do modelo World Oil Production Capacity (WOCAP), estima que dentro de dois anos (até 2006) o preço do barril poderia atingir os US$125. Ou seja, uma previsão de triplicação do preço actual do barril mesmo antes do fim do "planalto" previsto para 2008.
Outra consequência que, apesar da enxurrada de desinformação despejada pelas organizações internacionais e pelos media corporativos, quase toda a gente percebe de imediato é ao nível geopolítico. O início do fim do petróleo intensifica a luta do imperialismo para se apossar das últimas reservas remanescentes no planeta. A guerra de conquista que se trava agora no Afeganistão e no Iraque, a ameaça de outras (Irão, Colômbia, Ásia Central, etc), a tomada de controle das reservas de outros países (África, América Latina), etc, a rivalidade entre o imperialismo americano e o sub-imperialismo europeu, o peso relativo da produção da OPEP versus o da não-OPEP, etc, tudo isso está a acontecer diante de nós neste momento (o défice de compreensão disto entre milhões de pessoas do mundo deve-se à desinformação dos media corporativos). No entanto, a dimensão geopolítica do problema já é razoavelmente conhecida e a opinião pública qualificada compreende-a bem. Há, no entanto, outras espécies de consequências, talvez mais fundas, que não são imediatamente perceptíveis. Refiro-me ao actual modelo mundial de produção e de distribuição de mercadorias .
Comecemos pelo lado da distribuição. Desde Adam Smith elaborou-se o programa — digo muito bem, "programa" e não "teoria" — da divisão internacional do trabalho. Ele vem sendo aplicado há um par de secúlos. Durante as décadas do pós-guerra o Banco Mundial e o FMI impuseram uma divisão internacional que forçava os países subdesenvolvidos a se especializarem na produção de determinados produtos a fim de exportarem e assim obterem divisas duras para pagar: 1) o serviço da dívida; 2) o consumo perdulário das suas classes dominantes locais e 3) a importação de comida para os seus povos. Com base nessa política, tais países abandonaram (ou foram forçados a abandonar) preocupações com a auto-suficiência alimentar. Argumentava-se que era mais barato importar os alimentos do que produzi-los internamente. Assim, inúmeros países da África e América Latina especializaram-se nas produções de exportação (agrobusiness, petróleo, café, carne, minérios metálicos, frutas, etc) e deixaram de estar em condições de alimentar as suas próprias populações. Nessa altura, será de perguntar, o que acontecerá quando a alta dos custos dos transportes internacionais puser em causa o actual modelo globalizado de distribuição, em que as mercadorias têm de vencer distâncias de milhares de quilómetros? O que acontecerá quando o custo da tonelada transportada se tornar astronómico? Tudo indica que ele será posto em causa, pois não será sustentável. O que aconteceria então? Uma resposta tentativa: Seria de prever um retorno à teoria — provada ao longo de milénios — da auto-suficiência alimentar dos países. Trata-se de teoria intuitiva e cheia de bom senso que foi brutalmente destruída pelo capital (Cuba, com a sua experiência pós-1989, poderia nessa altura dar lições ao mundo). Mas terá este sistema a inteligência, a racionalidade e a vontade de promover uma tal alteração que vai ao arrepio das teorias em vigor e dos interesses dominantes? Um eventual retorno à filosofia da auto-suficiência alimentar significaria, só por si, uma autêntica revolução nas relações de distribuição oligopolizadas que regem o mundo de hoje. É de prever que o capital monopolista combata ferozmente tal saída, fazendo todo o possível e imaginável para impedir a adopção de tal caminho.
O problema do transporte será verdadeiro igualmente no plano da distribuição dentro de cada país. Até mesmo com preços do barril a nível "normal" actualmente já há países na África que não dispõem de recursos sequer para importar refinados de petróleo. Tal situação poderá estender-se a outros países não-produtores de petróleo, africanos ou não. Pode-se imaginar que as dificuldades de transporte tendam a levar a localismos da produção dentro de cada país, com prováveis retrocessos iniciais a nível da produtividade (métodos mais primitivos, etc). As relações cidade-campo ficarão igualmente afectadas, o campo terá dificuldade em alimentar as cidades "inchadas" do mal chamado Terceiro Mundo.
Do lado da produção, as consequências têm um carácter tão multifacético e complexo que é difícil prever o que poderia vir a ser a resultante final. Ainda que sumariamente, sem pretender fazer futurologia, podem-se imaginar algumas das possíveis consequências:
Na agricultura, verifica-se que a de tipo intensivo (o chamado agrobusiness) repousa em inputs que tem origem no petróleo — é o caso dos fertilizantes azotados, dos pesticidas e fungicidas, do combustível para a maquinaria agrícola, etc. Assim, a escassez do petróleo tenderá a reduzir a produtividade do trabalho e o rendimento proporcionado pela terra. E isto ocorreria com mais intensidade em terras "velhas", que há muitas gerações estão a produzir e cuja fertilidade só pode ser reposta por meios artificiais. Há quase 200 anos a humanidade está a retirar fertilizantes da terra e a lançá-los fora nos esgotos das cidades.
No caso da agricultura de pequena escala o panorama, naturalmente, seria menos grave do que na primeira. No entanto, falta saber em que medida poderia esta produzir um excedente suficiente para repor as perdas da intensiva. As relações de propriedade certamente terão de mudar para permitir o acesso à terra a milhões de novos agricultores.
São admissíveis igualmente consequências demográficas, tanto a nível da taxa de crescimento populacional como da distribuição espacial das populações — uma des-urbanização, com um retorno ao campo a fim de cultivar a terra. A proporção actual dos países desenvolvidos, em que 10% da população alimenta os 90% restantes, provavelmente não poderá ser mantida. Mais gente terá de dedicar-se à agricultura.
A indústria será afectada de modo directo, principiando naturalmente pelas mais "energívoras". A obsolescência de parte do parque industrial mundial será uma possibilidade forte, com o sucateamento de muitas delas (refinarias de petróleo, fábricas de veículos convencionais, etc). Será de admitir o surgimento de tipos de indústrias mais pequenas e energeticamente mais auto-suficientes, na linha preconizada por Schumacher. Não será, portanto, uma volta ao passado histórico pois agora a humanidade dispõe de um acervo de conhecimentos adquiridos que pode ser posto ao serviço da produção em novos moldes (a electrónica é pouco devoradora de energia e pode ser posta ao serviços da produção). Parece certo o desenvolvimento das energias renováveis (solar térmica e fotovoltaica, eólica, marés, ondas, geotérmica, hidroeléctrica, biogás e biomassa, etc), do gás natural (cuja Curva de Hubbert é mais aplainada, mais extensa no tempo e tem um pico menos bem definido) e do nuclear. Parecem menos certas as perspectivas do tão apregoado hidrogénio uma vez que este não é uma fonte primária de energia (os seus defensores, como Rifkin e a União Europeia, ainda não explicaram de onde poderá ele ser extraído, a custos comportáveis, quando acabar o gás natural e o petróleo — para obter hidrogenio da água também se gasta energia!).
Estas pinceladas rápidas, têm um carácter meramente impressionista a fim de dar uma ideia da Transição de Era que está por vir. São apenas exemplos de alterações que podem suceder-se. Mas sejam quais forem elas, a certeza é de que inelutavelmente irão verificar-se enorme alterações no modo de produção e distribuição planetário e nada será como dantes.
Temos portanto uma crise anunciada e até datada (muitos analistas prevêem o fim do actual "planalto" da Curva de Hubbert por volta de 2008) e outra anunciada mas não datada: o possível desenlace da crise do modo de produção capitalista num (sempre adiado) colapso sistémico.
Os temas aflorados acima constituem modificações que se podem considerar mais gigantescas do que a Revolução Industrial no século XIX, com a invenção da máquina a vapor. Esta foi uma Revolução muito localizada no espaço (Grã-Bretanha) e que só muito lentamente, ao longo de mais de cem anos, difundiu-se pelo resto do mundo (mesmo assim nem todo, pois ainda hoje a industrialização não chegou a imensas áreas do mundo). Em contra-partida, o fim da Era do Petróleo afectará o mundo todo e de uma forma síncrona: a escassez de petróleo atingirá todos e ao mesmo tempo.
Estamos a falar de alterações decisivas para o futuro da humanidade, que comprometem a sua existência. Por isso, é espantoso que a maior parte dos responsáveis — a começar pelos ditos "estadistas" (se ainda existem), pelos media e por entidades como a Agência Internacional de Energia da OCDE — ignore um problema desta escala e desta magnitude, um problema que põe em causa as bases de funcionamento da sociedade. Pior: muitas vezes tal problema não só é ignorado como é também negado, numa autêntica política do avestruz.
Durante anos a fio os monopólios petroleiros, organizações estatais (como o US Geological Survey), organizações internacionais (como o Banco Mundial, a AIE da OCDE, etc) pura e simplesmente ignoraram ou fingiram ignorar o problema a fim de não contrariar os interesses estabelecidos. Para indivíduos imbuídos da ideologia neoliberal, a actuação predatória sobre os recursos naturais em benefício do capital é algo "normal". É assim que se dizimam de modo irreversível as florestas do mundo todo, que se esgotam os lençóis freáticos de água doce, que se contaminam terras e águas com explorações mineiras e outras, que se esgotam bancos pesqueiros com capturas que não permitem a reposição de stocks, etc, etc — e que se dizima o petróleo de uma forma bárbara ao ritmo de 82 milhões de barris/dia (4,1 mil milhões de toneladas/ano). A nova moda nos EUA são os chamados Sport Utility Vehicles (SUVs), potentes monstros bebedores de gasolina em escala jamais vista antes.
Mas as evidências de esgotamento que se acumularam foram tantas que aqueles que preferiam ignorar o problema tiveram de ensaiar respostas. Surgiram assim os "negacionistas", com as suas falácias. Uma das espécies de negacionistas é a dos economistas vulgares, de visão curta mas cheios de certezas dogmáticas. O seu negacionismo repousa na teoria neoclássica. Dizem eles que o deus mercado tudo regulará, pois trata-se apenas uma questão de preços. Assim, se a procura ultrapassar a oferta haverá "simplesmente" um reajustamento de preços. Isto significa que aqueles que puderem pagar os novos preços poderão continuar a queimá-lo de forma perdulária. Mas eles nada dizem o que se passaria quanto aos outros que não puderem pagar muitas vezes mais o preço actual — os quais constituirão a maior parte da espécie humana. Os exemplos actuais de pauperização de continentes inteiros (África, América Latina) não auguram nada de bom.
Outro tipo de negacionista é o dos que ostentam uma fé ilimitada no progresso tecnológico. Tal tipo de negacionista é muito frequente sobretudo entre aqueles que nada sabem de ciências, mas transferem para esta a resolução do problema. Este tipo de negacionista é muito encontrável entre políticos, sobretudo chefes de Estado. A sua vontade de conhecer os problemas reais já não é muito grande e, além disso, organizações internacionais como a União Europeia e a OCDE contribuem para mistificá-los — e por vezes induzem-nos à adopção de soluções equívocas mas que favorecem interesses de monopólios. Na verdade não há soluções tecnológicas prontas que possam no médio prazo e em grande escala vir a substituir o petróleo. Aqueles que dizem não pretender a gasolina e sim o "serviço" proporcionado pela gasolina e que o mesmo serviço poderia ser proporcionado por menor quantidade de gasolina (ou por outro combustível alternativo) estão a cair na utopia tecnológica. E aqueles que falam na pseudo-solução dos biocombustíveis auto-enganam-se com esta falácia pois, mesmo sem pensar nos custos, a terra agriculturável não é infinita.
Ainda há outros tipos de negacionistas, como aqueles que acreditam piamente (ou fingem acreditar) nas estatísticas públicas sobre reservas provadas, prováveis e possíveis, descobertas, produções, etc. Mas grande parte dessas estatísticas tem de ser expurgada de dados espúrios, introduzidos em função dos interesses daqueles que as produzem. Talvez acordem quando se revelarem verdades escondidas durante muito tempo, como por exemplo que o maior campo de petróleo do mundo (Ghawar, na Arábia Saudita) já atingiu o seu pico e, mesmo utilizando técnicas de recuperação secundária, principia a declinar. Ou que a fase de declínio já atingiu igualmente o segundo maior campo do mundo (Cantarell, no México), cuja produção principiou em 1979.
Camaradas e amigos:
Não tenho gosto em ser Cassandra. Não pretendo fazer terrorismo energético. Pretendo apenas despertar as atenções para um problema que, até agora e na generalidade, tem sido silenciado. A humanidade tem o direito e o dever de ser informada do que está para acontecer. O debate precisa ser lançado. A confluência da crise do capitalismo na sua fase senil com a crise do petróleo não poderá deixar de ter repercussões fortíssimas sobre a humanidade. Mas não está pré-determinado como será o desenlace destas crises. Há muitas soluções possíveis e factíveis, há muitos futuros possíveis. Se o actual modo de produção e distribuição fosse racional e justo, tentaríamos poupar ao máximo o petróleo ainda existente e efectuar de modo tão suave quanto possível a transição para o mundo pós-petróleo. Mas o modo de produção e distribuição capitalista nada tem de racional nem de justo. Assim, são de prever grandes embates entre povos do mundo todo e os monopólios que os dominam. Em alguns lugares do mundo surgirão situações revolucionárias, mas elas só poderão ser aproveitadas se os povos e as suas vanguardas estiverem preparados para a ruptura com o imperialismo e a tomada do poder — caso contrário, será o imperialismo a impor as suas "soluções", com um carácter retrógrado e agravador dos problemas. Trata-se de uma corrida contra o tempo. O desenlace terá um carácter revolucionário ou fascizante. O desafio é terrível. Para enfrentá-lo é imperioso elevar o nível de consciência daquilo que está em causa. Posições recuadas e "possibilismos" só levam à derrota.[*] Comunicação ao Encontro Internacional "Civilização ou Barbárie", Serpa, 23-25/Set/2004.
Esta comunicação encontra-se em http://resistir.info .
English version at URL: http://www.globalresearch.ca/articles/FIG503A.html .
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No dia 4 de julho de 2008, o barril de petróleo atingiu o valor de $145,00 (cento e quarenta e cinco dólares). Em 2006, o barril atingiu 66 dólares.
Um comentário:
Nossa !!! Muito real.Tô com medo.
Abraço
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