23 de janeiro de 2009

Sobre o Hizbollah

Caia Fittipaldi traduziu uma entrevista [longa] de Joseph Alagha* para a Religioscope, em 17 de maio de 2007, sobre o Hizbóllah. Como tal pauta não será debatida na mídia corporativa, disponibilizamo-la no blog:

Religioscope – O Hizbóllah não é simples resultado da invasão israelense de 1982. Parece ser também resultado da mobilização política da comunidade xiita e de sua islamização. O senhor pderia falar um pouco sobre os aspectos históricos desses dois momentos?

Joseph Alagha – O Hizbóllah não surgiu, como movimento da resistência islâmica, do nada, é claro. É o resultado de um longo processo histórico que começa antes de o Hizbóllah estruturar-se. Até os anos 90s, a comunidade xiita esteve sub-representada numa paisagem política, no Líbano, dominada pelos cristãos – especialmente os maronitas – e os sunitas. Socialmente e economicamente, a comunidade xiita também vivia sob exclusão. Nos anos 50s e 60s, ser xiita ainda era uma espécie de desgraça, era ser cidadão de terceira classe.

Dia 30/12/1957, o líder da comunidade libanesa xiita morreu, Sayyid[1] Abdul Husayn Sharafeddin. O presidente da república, Kamil Sham'un (1900-87), solicitou que fosse enviado do Iran um outro líder religioso; o enviado foi Imam[2] Sayyid Musa al-Sadr (1928-78?). Curiosamente, porque a história é cheia dessas ironias, foi o mesmo presidente libanês, Kamil Sham'un, quem pediu a intervenção dos marines dos EUA, no Líbano.

Musa Sadr nasceu em Qom, Iran, cidadão iraniano portanto, embora de ascendência libanesa. É filho do Aiatolá Sadr al-Din Sadr (falecido em 1954) que nasceu em Tiro. Esse, Musa Sadr, foi o líder carismático que mobilizou a comunidade xiita no Líbano. Em 1969, ascendeu ao posto de líder do Supremo Conselho Islâmico Xiita o que lhe deu condições de prosseguir mais firmemente no trabalho de estabelecer instituições sociais e econômicas para a comunidade xiita. Suas iniciativas abriram muitas possibilidades e progressivamente promoveram a integração dessa comunidade no sistema político do Líbano.

Mas o Imam Musa Sadr jamais pensou em "Estado islâmico", ideia que o Hizbóllah só desenvolveria nos anos 80s. O objetivo de Musa Sadr foi integrar a comunidade xiita no sistema libanês. Mas vale observar também que a política da infitah, ou "abertura" para outras comunidades libanesas, só avançou depois do Acordo de Ta'if (1989[3]), largamente influenciado pelo pensamento de Musa Sadr.

Em outras palavras, a politização da comunidade xiita aconteceu no período em que Musa Sadr foi líder religioso e tem fundamentos sociais, políticos e militares. Em janeiro de 1975, meses antes de começar a guerra civil, Musa Sadr fundou um movimento islâmico de resistência, Harakat al-Muqawama, mais conhecido pela sigla "Amal" [de Afwaj al-Mouqawama Al-Lubnaniyya, "Brigadas da Resistência Libanesa"]. Aspecto interessante da política de Musa Sadr são os contatos e relações que estabeleceu com o arcebispo dos católicos gregos, Grégoire Haddad; juntos, criaram o "Movimento dos Carentes", Harakat al-Mahrumeen. A resistência do grupo Amal nasceu de fato desse grupo "dos Carentes", que não tem identidade islâmica.

O final dos anos 70s coincidiu com a primeira invasão de Israel e com a volta do Imam Khomeini, do Iran. Esse retorno como que hipnotizou, literalmente, a comunidade xiita no Líbano e alterou-a profundamente, também no plano ideológico. Pela primeira vez, desde os tempos do Profeta e do Imam Ali, os xiitas estavam em posição de poderem estabelecer um Estado islâmico. Esse sucesso acelerou muito a mobilização da comunidade xiita no Líbano.

É importante destacar que, embora Imam Sadr evitasse usar palavras de ordem do islamismo, como as que se encontram explícitas nos discursos de Khomeini, os discursos de ambos são quase idênticos. Ambos sempre disseram que os islâmicos têm o dever de lutar contra Israel; ambos têm a mesma disposição combativa. Ao mesmo tempo, ambos, Khomeini e especialmente Musa Sadr, sempre pregaram a convivência pacífica entre todos os libaneses, como um tesouro do qual ninguém deveria abrir mão. Khomeini desenvolveu uma abordagem binária, de oposição entre opressor e oprimido – abordagem que permite alianças de cristãos e muçulmanos libaneses, por exemplo.

A militância xiita, iniciada com o trabalho do Imam Musa Sadr, islamizou-se, assim, no contexto da emergência do Islam no Iran, no início dos anos 80s. No Líbano, a exportação da Revolução Islâmica foi um sucesso.

O Hizbóllah, como ideologia religiosa, começou em 1978, mas só se estabeleceu como movimento em algum momento entre 1982 (invasão de Israel ao Líbano) e 1985 (apresentação do manifesto do grupo, por Shaykh Ibrahim al-Amin), segundo o qual o evento 1, acima, tem a ver com a formação do grupo. Em 1979, logo depois da 'vitória' da Revolução Iraniana, apareceu o logotipo do Hizbóllah; o nome foi criado por al-Musawi, um Sayyid de Najaf, Iraque, que depois foi segundo secretário-geral do Hizbóllah. Al-Musawi foi professor do atual líder do movimento, Sayyid Hassan Nasrállah.

Religioscope – Como o senhor define o DNA do Hizbóllah?

Joseph Alagha – Basicamente, se pode dizer que o Hizbóllah é um movimento Islâmico jihadi progressista. O uso do termo "jihad" não nos deve levar a pensar que o Hizbóllah seja inerentemente um grupo radical, para o qual a violência seja a única via a considerar. É verdade que seu principal objetivo foi, é claro, militar, profundamene ligado à resistência a Israel (al-Muqawama al-Islamiyya), mas não exclusivamente ligado a isso. Além do fato de que o Partido de Deus conseguiu aproximar atores cristãos e sunitas, em algumas de suas lutas políticas, a jihad[4] do Hizbóllah não é luta militante que vise a derrubar um governo 'de infiéis'; essencialmente, é um esforço moral para alcançar a auto-disciplina.

Parece anedótico ou superficial, mas, em vários sentidos, essa filosofia da al-Jihad al-Akbar ("a grande luta") tem sido traduzida em ação, com resultados políticos consideráveis. O movimento não apenas tem-se mantido distante da corrupção que corrói a reputação de todas as organizações políticas libanesas, mas também desenvolveu uma política interna de absoluta transparência, com efeitos também sobre as ambições pessoais que são, pode-se dizer, religiosamente autolimitadas. Quando, no Líbano, todos os políticos têm fama de levar até as poltronas dos gabinetes quando deixam os cargos, o Hizbóllah tem uma política de poder rotativo que visa, diretamente, a evitar a corrupção burocrática. Os quadros do movimento têm de trocar regularmente de cargos (tanto mais seguidamente quanto mais importante o serviço, considerados os objetivos do movimento), e trocam.

O Hizbóllah não é movimento monolítico; é uma coalizão de clérigos xiitas sob a coordenação do Conselho al-Shura, que é mais alto corpo de tomada de decisões no Partido de Deus, formado de sete 'ulama[5] libaneses. São frequentes as disputas e debates internos, sobretudo porque todo o sistema repouca na fé, não no sentido de uma ideologia, como no Estado soviético, e virtualmente qualquer um pode contestar uma interpretação ou o acerto de uma decisão. Isso já levou a uma divisão no movimento, quando Shaykh Subhi Tufayli, um dos pais fundadores e ex-primeiro secretário do Hizbóllah, deixou o movimento, depois de um confronto com Nasrállah. Nasrállah foi eleito secretário-geral e Shaykh Tufayli entendia que seria ele o sucessor óbvio, considerados os critérios da administração interna do Partido. Subhi Tufayli mantém-se muito fiel à narrativa anterior do Hizbóllah, mais marcial e profundamente anti-ocidental. E o atual secretário-geral, Nasrállah, considera aquele discurso desatualizado, antiquado e busca orientar o partido na direção do interesse nacional e da necessidade de negociar e ceder, por considerações políticas estratégicas.

Religioscope – O Hizbóllah exibe três identidades, cada vez mais discrepantes entre elas: tem uma identidade religiosa, tem um caráter político e libanês e é actante na geopolítica do Oriente Médio. O senhor poderia comentar rapidamente essa tripla identidade?

Joseph Alagha – O desenvolvimento ideológico do Hizbóllah pode ser dividido em três fases. De 1978, com a chegada do Sayyid Abbas al-Musawi ao vale do Bekaa, até 1984-85, quando houve a instituicionalização do Hizbóllah, o Partido de Deus tem de ser visto como movimento essencialmente religioso.

A segunda fase, vai de meados dos anos 80s até o início dos anos 90s. Embora se veja, nesse tempo, uma mistura de ideologias religiosas e políticas, mesmo assim é claro que a política era dominante. Creio que o discurso religioso fosse principalmente uma ferramenta para justificar as instâncias políticas do movimento.

Em 91, Sayyid al-Musawi defendeu a idéia da abertura para outras comunidades e encorajou o movimento a aproximar-se de comunidades libanesas, para integrar-se no sistema político libanês e na esfera pública. Vê-se a libanização do Hizbóllah ao longo dos anos. A partir dos 90s, o Partido de Deus planejou uma estratégia para integrar-se nas instituições libanesas. Mas isso não implica que o Hizbóllah fosse partido revolucionário: não exigiu qualquer alteração radical na constituição e reconheceu o Tratado de Ta'if (1989), que pôs fim à Guerra Civil, as relações especiais entre Síria e Líbano, e as várias reformas políticas.

Na terceira fase, a era do programa político, de 1992 até hoje, o Hizbóllah integrou-se e continua a integrar-se cada vez mais na esfera pública libanesa, com aspiração até a controlá-la, depois da Segunda Guerra do Líbano.

O Hizbóllah é actante na geopolítica do Oriente Médio, por causa de suas relações com a Síria e a relação muito especial com o Iran. O Iran é ideológico e religioso. O laço que liga o Hizbóllah e o Iran, especialmente com o Imam Ali Khamenei, presidente da República Islâmica entre 81 e 89 e, depois, eleito líder supremo do país, baseia-se no velayat e-faqih e em seu importante apoio militar e financeiro.

"Velayat e-faqih", literalmente "a guarda do jurisprudente", descreve o papel central e de comando que os religiosos devem ter na vida política. Dado que o Hizbóllah aceita esse princípio religioso, torna-se, na prática, 'servidor', ou quadro político, do líder supremo do Iran. Além disso, o Iran também tem sido o principal financiador apoiador do Hizbóllah desde que foi criado. Em 1995, contudo, Ali Khamenei, ele mesmo, indicou dois clérigos do Hizbóllah – Nasrállah e Yazbik, como seus representantes religiosos no Líbano. Essa decisão permite que o partido de Nasrállah receba diretamente o khums, uma modalidade de apoio financeiro que deriva do imposto religioso (cerca de 20% da renda, acrescida ao imposto tradicional, o zakat) sem que os fundos tenham de passar por fundações iranianas. Essa situação contribuiu consideravelmente para a autonomia do Hizbóllah. É portanto simplista assumir que a relação entre o Iran e o Hizbóllah seja algum tipo de relação mecânica. É relação dinâmica e em evolução, baseada em redes formais e informais entre os clérigos do Hizbóllah e os clérigos iranianos, a relação que liga o Partido de Deus e o Iran é muito complexa e não é relação unidimensional.

A relação entre o Hizbóllah e a Síria é menos complexa e mais pragmática: dado que a importação de armas exige aprovação da Síria, o movimento é absolutamente obrigado a manter boas e estratégicas relações com o regime sírio.

Religioscope – A retirada da Síria criou um vácuo político no Líbano. Essa situação encorajou o Hizbóllah a expor-se como protetor da comunidade dos xiitas, mais do que como partido nacional. O que resta da fórmula que Nasrállah criou "De Partido de Deus, rumo a partido de governo"?

Joseph Alagha – Enquanto os sírios permaneceram no Líbano, o Hizbóllah não aspirou a chegar ao Gabinete, quer dizer, ao ramo executivo do governo, no qual se tomam as decisões por maioria de 2/3, em votação, nos casos em que não haja consenso.

Nos termos do Acordo de Ta'if, também o Parlamento, como o Gabinete, está dividido, meio a meio, entre muçulmanos e cristãos. Assim, o atual Gabinete é formado de 12 cristãos e 12 muçulmanos. Pela regra do equilíbrio entre os grupos religiosos, os xiitas só podem alcançar um máximo de cinco cadeiras. Portanto, naquele momento, o Hizbóllah não tinha meios para promover aquela agenda.

Contudo, depois que os soldados sírios deixaram o Líbano em 2005, surgiu uma oportunidade. O Partido de Deus buscou preencher esse vácuo político, para conseguir influenciar as decisões políticas do Gabinete. E, de fato, foi operação bem-sucedida. Com apenas dois ministros, todo o movimento conseguiu que o governo de Siniora reconhecesse oficialmente e explicitamente o status de "movimento de resistência", do Hizbóllah. Em termos políticos táticos, foi movimento muito inteligente.

O Partido de Deus, sozinho, não poderia influenciar as principais decisões do Conselho de Ministros. Mas, porque comprovou sua habilidade para jogar o jogo da política libanesa, Nasrállah conseguiu construir uma aliança com o Movimento Patriótico Livre, do maronita Michel Aoun. Essa aliança permitiu que o Hizbóllah obtivesse 1/3 do poder de veto no Conselho de Ministros, o que lhe dá posição de poder considerável, para controlar as decisões políticas. Se o atual governo não boicotar esse poder, o Hizbóllah terá meios para impedir qualquer decisão política que não lhe interesse.

Religioscope – O senhor acredita que os eventos mais recentes encorajaram o movimento, na direção de insistir mais dedicadamente na politica, ou, ao contrário, levou-o a adotar posição mais combativa, estimulada pela "vitória" sobre Israel, como dizem?

Joseph Alagha – Estrategidamente, não creio que se possa dizer que ainda haja qualquer tipo de confrontação direta, bélica, entre o exército de Israel e o Hizbóllah. Há 15 mil soldados libaneses e cerca de 12 mil soldados das forças da ONU, plantadas entre Israel e o Hizbóllah. Nessas condições, já não há combate entre os combatentes do Hizbóllah e os soldados de Israel. Até aqui, a resistência tem sido a razão de ser do movimento. Se esse afastamento entre os dois exércitos for duradouro, se Israel mantiver-se, como hoje, como ameaça distante, o mais provável é que o Hizbóllah dirigirá os seus jihadistas 'para dentro', digamos; que buscará controlar a esfera pública no Líbano.

A questão da luta armada é questão complexa, ligada não apenas à eficácia da resistência, mas à própria definição do Hizbóllah. O movimento sabe disso e, se quiser integrar-se completamente na paisagem política do Líbano, mais cedo ou mais tarde terá de depor as armas. No meu entendimento, o Hizbóllah está tentando ganhar tempo, ainda sem ter definido uma agenda de longo prazo, exceto, sim, o que já está definido: ganhar espaço na esfera pública e na arena política nacional no Líbano.

Religioscope – Na teologia política do Hizbóllah, como vêem o processo democrático? Vêem-no como processo legítimo? Como se podem combinar na mesma agenda o nacionalismo e o reconhecimento dos limites democráticos, e a velayat e-faqih?

Joseph Alagha – Nesse contexto, a velayat e-faqih descreve uma relação subordinada entre o Hizbóllah e o supremo guia da Revolução Islâmica, hoje, Ali Khamenei. Isso não implica subserviência ou subordinação ao governo do Iran como tal. O Imam Khamenei é fundador do Partido de Deus desde os primóridos, quando foi deputado ministro da Defesa ["deputy minister of defence"] no período do Aiatolá Khomeini. Em 1992, Ali Khamenei autorizou e apoiou a participação do Hizbóllah nas eleições (movimento, vale anotar, fortemente desaprovado pela tendência radical no movimento, encabeçada por Subhi Tufayli).

O partido defende princípios democráticos no quadro dos princípios do islamismo, por exemplo, defende o pluralismo político, equivalente ao conceito da Shura, quer dizer "conselho consultivo".

Não há contradição entre alguma espécie reformada de velayat e-faqih e uma sociedade pluralista e multirreligiosa, como a sociedade libanesa. Mas a versão iraniana do mesmo princípio não se aplica ao contexto do Líbano. Enquanto um shaykh [literalmente "um ancião", um "dos mais velhos"] como Subhi Tufayli jamais aceitará a idéia de subordinar-se, no mundo político, a não-muçulmanos, Ali Khamenei e Nasrállah sabem que, se quiserem inserir-se no mundo político libanês e lá manter-se, terão de ceder em alguns pontos.

Os atuais líderes do Hizbóllah já demonstraram que são capazes de fazer concessões, não só no campo político, mas também no campo religioso e sociológico. O recente acampamento que o Hizbóllah[6] organizou e manteve, como ocupação, literalmente, no centro da cidade de Beirute, por exemplo, criou situações que nada têm a ver com as práticas islâmicas como são entendidas no Iran: um acampamento na rua (literalmente), onde viviam cristãos e xiitas e mulheres, umas veladas, outra sem véu, e homens, lado a lado, convivendo e dormindo em barracas próximas, quando não na mesma barraca.

Religioscope – Para reforçar a presença no Líbano e adaptar sua ideologia, mais cedo ou mais tarde o Hizbóllah terá de separar-se do Iran, sua principal fonte de inspiração e de financiamento. O movimento conseguirá fazer isso sem perder ao mesmo tempo a alma e o poder?

Joseph Alagha – Creio que nem o Hizbóllah já tem resposta a essa pergunta. Apesar de todo o compromisso religioso, o movimento 'gostou' de ter alcançado a posição que ocupa hoje na sociedade libanesa. A sobrevivência do movimento não está tão intimamente ligada ao destino do Iran. No Líbano, todos os prédios tem um gerador 'reserva', para conviver com os caprichos do suprimento de eletricidade; o Línano é o gerador 'reserva' do Hizbóllah. Mais do que isso: ao contrário do que dizem alguns observadores, o Hizbóllah não depende completamente do financiamento que recebe do Iran. Como já disse, o movimento tem direito legal de receber os impostos religiosos, sem que passem pelas instituições iranianas. O Partido de Deus estaria muito longe de ficar sem dinheiro, mesmo que o Iran parasse de financiá-lo.

Hizbóllah existe há mais de 25 anos. "O futuro é nosso", para citar Nasrállah e, de um ponto de vista democrático, é provável que tenha razão. Em fala recente, Nasrállah acentuou a idéia de renascimento. Não falou sobre isso no dia em que os muçulmanos comemoram o nascimento do profeta Maomé; esperou a Páscoa. A analogia entre um movimento que renasce depois de anos de luta e a teologia cristã da ressureição não foi casual.

Para responder sua pergunta, em termos bem sintéticos: o Hizbóllah está otimistamente adiando o problema.

Religioscope – Há alguns clérigos xiitas que fazem oposição ao Hizbóllah no Líbano. Por exemplo, para citar alguns, o Mufti de Tiro, Ali al-Amin, ou Shaykh Hani Fahs. Quais são os pontos da divergência com o movimento de Nasrállah?

Joseph Alagha – Além desses dois que você citou, há outros clérigos que têm manifestado desaprovação à política do Hizbóllah. Ali al-Amin, por exemp, tem criticado que o movimento recuse-se a depor armas. Embora não seja protagonista nem personagem muito destacado no cenário libanês, essa oposição causa incômodo no movimento. O Mufti al-Amin é clérigo da alta hierarquia religiosa xiita, o que se manifesta, para o crentes, pelo turbante negro e que significa que é descendente do Profeta. Outra importante figura é Shaykh Mohammad al-Hajj Hassan, nascido no vale do Bekaa. É fundador da União Xiita Livre (ing. Free Shia Union) de Beirute e fala muito e muito frequentemente contra o Hizbóllah, manifestando-se sempre fiel ao Gabinete e chamando atenção para o fato de que o Partido de Deus não representa todos os xiitas libaneses. Mas, o mais importante: Ali al-Amin, Hani Fahs e al-Hajj Hassan têm poucos seguidores, na comunidade xiita. Juntos, representam de 2 a 5% dos xiitas libaneses e não tem peso suficiente para competir com o Hizbóllah.

Há duas vias para explicar essa oposição. Todos têm ou parentes ou amigos íntimos no movimento de Nasrállah. O fato de que possam manifestar a oposição mostra que Hizbóllah é capaz de conviver com a liberdade de expressão, pelo menos, digamos, 'em casa'. Além disso, não se deve descartar completamente a possibiidade de que essa oposição seja uma espécie de estratagema de relações públicas, organizado pelo próprio Hizbóllah, para demonstrar que o Hizbóllah não silencia os dissidentes. É pouco provável.

Outro cenário possível é que a oposição seja resultado de algum acordo, formal ou informal, entre figuras xiitas e o governo, para enfraquecer ou desacreditar a legitimidade do Hizbóllah. Há, de fato, rumores de que os discursos recentes feitos por Subhi Tufayli – um pregador religioso muito influente entre os xiitas em alguma vilas do Bekaa – teriam sido inspirados por uma proposta que o governo ter-lhe-ia feito, em troca de imunidade. Shaykh Tufayli foi condenado, por brigas entre membros de suas milícias e o exército, em 1998, que resultaram em várias mortes; dentre os mortos, há um tenente e deputado, Shaykh Khudr Tlays, genro de Tufayli.

Religioscope – A participação de mulheres, no Partido de Deus, tem aumentado. Para os padrões islâmicos, isso tornaria o Hizbóllah um partido progressista?

Joseph Alagha – Sim, acho que sim. As mulheres são muito ativas, no Hizbóllah, tanto na estrutura educacional – a maioria das professoras são mulheres –, quanto na imprensa e nas ONGs. As duas esferas nas quais as mulheres são quase ausentes são a política e a esfera militar (ao contrário do modelo iraniano). E a tendência é na direção de integração cada vez maior, das mulheres, no movimento.

Já há uma mulher que participa como membro pleno do Conselho Político, Rima Fakhry[7]. É engenheira agrônoma, formada pela American University de Beirute. A tendência ocidental, de imaginar que o Hizbóllah seja réplica do Iran em solo libanês é completamente errada. Se se visitam as escolas que o movimento mantém, por exemplo, a atmosfera é bastante liberal. As mulheres usam o véu e não usam maquiagem, mas muitas delas falam perfeito inglês e muitas têm grau universitário.

NOTAS:

[1] Sayyid é título honorífico atribuído a homens que são considerados descendentes de Maomé, profeta do islamismo.

[2] Iman é um líder islâmico, quase sempre responsável por uma mesquita e líder comunitário.

[3] É o acordo que pôs fim à guerra civil no Líbano, negociado em Ta'if, na Arábia Saudita, em setembro de 1989 e aprovado no parlamento libanês dia 4/11/1989. Para ler o texto do acordo, ver http://www.al-bab.com/arab/docs/lebanon/taif.htm (em inglês).

[4] A palava Jihad designa "uma luta, mediante vontade pessoal, de se buscar e conquistar a fé perfeita". Ao contrário do que muitos pensam, jihad não significa "Guerra Santa", nome dado pelos Europeus às lutas religiosas na Idade Média (por exemplo: Cruzadas). Aquele que segue a Jihad é conhecido como Mujahid (sobre isso, para informações iniciais, ver http://pt.wikipedia.org/wiki/Jihad)

[5] Ulama [subst. coletivo], "os versados no islamismo, os que possuem a qualidade de "ilm", de "aprender" no mais amplo sentido. Dentre os "ulamā", versados na teoria e na prática das ciências muçulmanas, são escolhidos os professores religiosos da comunidade islâmica – teólogos (mutakallimun), especialistas no texto-lei sagrado (muftis), os juízes (qadis), os professores — e altos funcionários do Estado (ou do poder político) religioso, como o shaikh al-Islām. Em sentido mais limitado, "ulama" pode designar um conselho de homens sábios que controlam o governo num Estado muçulmano" (Enciclopaedia Britannica, em http://www.britannica.com/EBchecked/topic/613126/ulama)

[6] Há boa imagem desse acampamento, no centro de Beirute, em 2/12/2006, em http://www.msnbc.msn.com/id/16006125/

[7] Sobre ela, ver entrevista em http://www.islamonline.net/English/Views/2006/05/article03.shtml

*Entrevista feita com Joseph Alagha em Beirute, em abril de 2007,
publicada em Religioscope, 17/5/2007 -
http://religion.info/english/interviews/article_317.shtml

Joseph Alagha é professor assistente de Estudos Islâmicos da Lebanese American University em Beirute.
É autor de The Shifts in Hizbóllah's Ideology. Religious Ideology,
Political Ideology, and Political Program [2002], 2006 [ed. ampliada], Amsterdam University Press.
Tem artigos publicados em vários jornais e periódicos acadêmicos especializados
(Middle East Report, ORIENT, Studies on Islam, ISIM Review, Sharqiyyat and Soera)

Um comentário:

Omar disse...

Muito rica a entrevista.
Abraço