London Review of Books, "LRB contributors react to events in Gaza", 15/1/2009
http://www.lrb.co.uk/web/15/01/2009/mult04_.html
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Ilan Pappe é professor catedrático do Departamento de História da Universidade de Exeter e co-diretor do Exeter Centre for Ethno-Political Studies. É autor de The Ethnic Cleansing of Palestine, de 2007.
Em 2004, o exército de Israel começou a construir uma cidade árabe cenográfica no deserto de Negev. Tem as dimensões de uma cidade real, tem ruas (todas com nomes), mesquitas, prédios públicos e carros. Ao custo de 45 milhões de dólares, essa cidade-fantasma foi adaptada para ser fantasma de Gaza, no inverno de 2006, depois de o Hizbóllah ter forçado Israel a retirar-se do Líbano, no norte. Nessa Gaza fantasma, o exército de Israel treinou para oferecer 'melhor combate' ao Hamás, no sul.
Quando o general Dan Halutz, chefe do estado-maior do exército israelense visitou a cidade fantasma depois da guerra do Líbano, disse à imprensa que os soldados "treinavam para atuar no cenário densamente povoado da cidade de Gaza". Em 2009, quando o bombardeio de Gaza já durava uma semana, Ehud Barak assistiu a um ensaio da invasão por terra. Equipes de televisões estrangeiras filmaram-no lá, assistindo à conquista da cidade cenográfica, às explosões de casas vazias onde, é claro, soldados matavam os 'terroristas' lá escondidos.
"O problema é Gaza", disse, em junho de 1967, Levy Eshkol, então primeiro-ministro de Israel. "Eu estava lá em 1956 e vi as serpentes peçonhentas andando pela rua. Vamos enjaular algumas delas no Sinai e, quem sabe, as outras imigram." Eshkol discutia o destino dos territórios recém ocupados: ele e seu gabinete queriam a Faixa de Gaza; mas não queriam as pessoas que ali viviam.
Muitos israelenses referem-se a Gaza como 'Me'arat Nachashim', uma cova de serpentes. Antes da Intifada I, quando a Faixa fornecia a Telavive a mão-de-obra para lavar pratos e varrer ruas, os gazenses eram desprezados ainda um pouco mais humanamente. A lua-de-mel terminou com a primeira Intifada, depois de vários incidentes nos quais alguns desses subalternos esfaquearam seus patrões. Dizia-se que os ataques haviam sido inspirados por fanatismo religioso e essa teoria gerou uma onda de islamofobia em Israel, que levou ao primeiro movimento para cercar Gaza e à construção de uma cerca eletrificada à volta da cidade. Mesmo depois dos Acordos de Oslo de 1993, Gaza permaneceu vedada, e era usada como fonte de mão-de-obra barata; ao longo dos anos 90s, a idéia de "paz" para Gaza significou a paulatina conversão de Gaza em gueto.
Em 2000, Doron Almog, então chefe do comando Sul, começou a policiar os arredores de Gaza: "Instalamos pontos de observação equipados com a mais avançada tecnologia e nossos soldados têm ordens para atirar em qualquer um que se aproxime da cerca; a distância mínima permitida é de 6 km", vociferava, sugerindo que política similar fosse adotada na Cisjordânia.
Só nos dois últimos anos, uma centena de palestinos foram assassinados por soldados simplesmente porque se aproximaram demais dos muros. De 2000 até a guerra de Gaza, os soldados israelenses mataram 3 mil palestinos (634 dos quais, crianças) em Gaza.
Entre 1967 e 2005, terra e água de Gaza vêm sendo sistematicamente roubadas pelos colonos judeus em Gush Katif, pagas pela população local. O preço da paz e da segurança dos palestinos nessa área foi entregarem-se para serem presos e colonizados. Desde 2000, os gazenses escolheram resistir em maiores números e com mais força. Não é o tipo de resistência que o ocidente admira muito: é resistência islâmica e militar.
A marca registrada dessa resistência são os foguetes Qassam, muito primitivos, que, de início, foram lançados principalmente contra os colonos em Katif. A presença de colonos na área impediu que o exército de Israel retaliasse com a brutalidade que usa contra alvos exclusivamente palestinos. Então os colonos foram evacuados, não como movimento unilateral com vistas a algum processo de paz como se disse então (a ponto de alguém ter sugerido que se desse o Prêmio Nobel da Paz a Ariel Sharon), mas apenas para facilitar a subsequente ação militar contra a Faixa de Gaza e para consolidar o controle da Cisjordânia.
Depois do desengajamento de Gaza, o Hamás assumiu, primeiro por eleições democráticas, depois por golpe preventivo, para evitar que o Fatah, com apoio dos norte-americanos, assumisse o poder. Enquanto isso, os guardas israelenses de fronteira continuaram a matar palestinos que se aproximavam do muro, e impôs-se o bloqueio em toda a Faixa de Gaza. O Hamás respondeu com foguetes contra Sderot, o que deu pretexto para que Israel usasse toda sua Força Aérea, artilharia e navios de guerra. Israel alegava que atirava contra "áreas de lançamento de mísseis", mas, na prática, significava que atirava contra qualquer área e todas as áreas de Gaza. Sempre com muitas mortes: só em 2007, houve 300 mortes em Gaza, 12 crianças.
Israel justifica o que faz em Gaza como parte da luta contra o terrorismo, ao mesmo tempo em que viola todas as leis internacionais de guerra. Como se os palestinos não devessem ter espaço algum na Palestina histórica, a menos que aceitem viver sem nenhum direito civil e sem nenhum direito humano. Podem ser ou cidadãos de segunda classe no Estado de Israel ou prisioneiros das mega prisões da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. Os que resistam são presos sem julgamento, ou mortos. Essa é a mensagem de Israel.
A resistência na Palestina sempre teve base nas vilas e cidades; e que outra base poderia ter? Por isso as cidades palestinas, vilas e vilarejos, cenográficos ou reais, sempre foram designadas, desde a revolta dos árabes de 1936, como "bases inimigas", nos planos e ordens de comando militares. Toda e qualquer retaliação ou ação punitiva sempre matará muitos civis, porque entre eles sempre pode haver militantes da resistência contra Israel. Haifa foi atacada como base inimiga em 1948, tanto quanto Jenin em 2002; hoje, Beit Hanoun, Rafah e Gaza são atacadas, também, como bases inimigas. Quando se tem poder de fogo e nenhum limite de contenção moral contra massacrar civis, tem-se a situação que todos vimos em Gaza.
Mas não é só no discurso militar, que os palestinos são desumanizados.
Processo similar está em andamento também na sociedade civil dos judeus israelenses – e isso explica o apoio massivo que a população israelense deu à chacina de Gaza. Os palestinos têm sido tão desumanizados pelos judeus israelenses – políticos, soldados e cidadãos comuns – que se tornou natural matar palestinos, tão natural quanto foi expulsar palestinos em 1948, ou cercá-los e emparedá-los nos territórios ocupados.
A reação ocidental indica que os líderes políticos ocidentais não conseguem ver a conexão direta que liga (i) a desumanização dos palestinos pelo sionismo e (ii) as políticas israelenses bárbaras em Gaza.
Há grave risco de que, ao final da "Operação Cast Lead", Gaza, toda ela, seja espelho da cidade fantasma do deserto de Negev.
Quando o general Dan Halutz, chefe do estado-maior do exército israelense visitou a cidade fantasma depois da guerra do Líbano, disse à imprensa que os soldados "treinavam para atuar no cenário densamente povoado da cidade de Gaza". Em 2009, quando o bombardeio de Gaza já durava uma semana, Ehud Barak assistiu a um ensaio da invasão por terra. Equipes de televisões estrangeiras filmaram-no lá, assistindo à conquista da cidade cenográfica, às explosões de casas vazias onde, é claro, soldados matavam os 'terroristas' lá escondidos.
"O problema é Gaza", disse, em junho de 1967, Levy Eshkol, então primeiro-ministro de Israel. "Eu estava lá em 1956 e vi as serpentes peçonhentas andando pela rua. Vamos enjaular algumas delas no Sinai e, quem sabe, as outras imigram." Eshkol discutia o destino dos territórios recém ocupados: ele e seu gabinete queriam a Faixa de Gaza; mas não queriam as pessoas que ali viviam.
Muitos israelenses referem-se a Gaza como 'Me'arat Nachashim', uma cova de serpentes. Antes da Intifada I, quando a Faixa fornecia a Telavive a mão-de-obra para lavar pratos e varrer ruas, os gazenses eram desprezados ainda um pouco mais humanamente. A lua-de-mel terminou com a primeira Intifada, depois de vários incidentes nos quais alguns desses subalternos esfaquearam seus patrões. Dizia-se que os ataques haviam sido inspirados por fanatismo religioso e essa teoria gerou uma onda de islamofobia em Israel, que levou ao primeiro movimento para cercar Gaza e à construção de uma cerca eletrificada à volta da cidade. Mesmo depois dos Acordos de Oslo de 1993, Gaza permaneceu vedada, e era usada como fonte de mão-de-obra barata; ao longo dos anos 90s, a idéia de "paz" para Gaza significou a paulatina conversão de Gaza em gueto.
Em 2000, Doron Almog, então chefe do comando Sul, começou a policiar os arredores de Gaza: "Instalamos pontos de observação equipados com a mais avançada tecnologia e nossos soldados têm ordens para atirar em qualquer um que se aproxime da cerca; a distância mínima permitida é de 6 km", vociferava, sugerindo que política similar fosse adotada na Cisjordânia.
Só nos dois últimos anos, uma centena de palestinos foram assassinados por soldados simplesmente porque se aproximaram demais dos muros. De 2000 até a guerra de Gaza, os soldados israelenses mataram 3 mil palestinos (634 dos quais, crianças) em Gaza.
Entre 1967 e 2005, terra e água de Gaza vêm sendo sistematicamente roubadas pelos colonos judeus em Gush Katif, pagas pela população local. O preço da paz e da segurança dos palestinos nessa área foi entregarem-se para serem presos e colonizados. Desde 2000, os gazenses escolheram resistir em maiores números e com mais força. Não é o tipo de resistência que o ocidente admira muito: é resistência islâmica e militar.
A marca registrada dessa resistência são os foguetes Qassam, muito primitivos, que, de início, foram lançados principalmente contra os colonos em Katif. A presença de colonos na área impediu que o exército de Israel retaliasse com a brutalidade que usa contra alvos exclusivamente palestinos. Então os colonos foram evacuados, não como movimento unilateral com vistas a algum processo de paz como se disse então (a ponto de alguém ter sugerido que se desse o Prêmio Nobel da Paz a Ariel Sharon), mas apenas para facilitar a subsequente ação militar contra a Faixa de Gaza e para consolidar o controle da Cisjordânia.
Depois do desengajamento de Gaza, o Hamás assumiu, primeiro por eleições democráticas, depois por golpe preventivo, para evitar que o Fatah, com apoio dos norte-americanos, assumisse o poder. Enquanto isso, os guardas israelenses de fronteira continuaram a matar palestinos que se aproximavam do muro, e impôs-se o bloqueio em toda a Faixa de Gaza. O Hamás respondeu com foguetes contra Sderot, o que deu pretexto para que Israel usasse toda sua Força Aérea, artilharia e navios de guerra. Israel alegava que atirava contra "áreas de lançamento de mísseis", mas, na prática, significava que atirava contra qualquer área e todas as áreas de Gaza. Sempre com muitas mortes: só em 2007, houve 300 mortes em Gaza, 12 crianças.
Israel justifica o que faz em Gaza como parte da luta contra o terrorismo, ao mesmo tempo em que viola todas as leis internacionais de guerra. Como se os palestinos não devessem ter espaço algum na Palestina histórica, a menos que aceitem viver sem nenhum direito civil e sem nenhum direito humano. Podem ser ou cidadãos de segunda classe no Estado de Israel ou prisioneiros das mega prisões da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. Os que resistam são presos sem julgamento, ou mortos. Essa é a mensagem de Israel.
A resistência na Palestina sempre teve base nas vilas e cidades; e que outra base poderia ter? Por isso as cidades palestinas, vilas e vilarejos, cenográficos ou reais, sempre foram designadas, desde a revolta dos árabes de 1936, como "bases inimigas", nos planos e ordens de comando militares. Toda e qualquer retaliação ou ação punitiva sempre matará muitos civis, porque entre eles sempre pode haver militantes da resistência contra Israel. Haifa foi atacada como base inimiga em 1948, tanto quanto Jenin em 2002; hoje, Beit Hanoun, Rafah e Gaza são atacadas, também, como bases inimigas. Quando se tem poder de fogo e nenhum limite de contenção moral contra massacrar civis, tem-se a situação que todos vimos em Gaza.
Mas não é só no discurso militar, que os palestinos são desumanizados.
Processo similar está em andamento também na sociedade civil dos judeus israelenses – e isso explica o apoio massivo que a população israelense deu à chacina de Gaza. Os palestinos têm sido tão desumanizados pelos judeus israelenses – políticos, soldados e cidadãos comuns – que se tornou natural matar palestinos, tão natural quanto foi expulsar palestinos em 1948, ou cercá-los e emparedá-los nos territórios ocupados.
A reação ocidental indica que os líderes políticos ocidentais não conseguem ver a conexão direta que liga (i) a desumanização dos palestinos pelo sionismo e (ii) as políticas israelenses bárbaras em Gaza.
Há grave risco de que, ao final da "Operação Cast Lead", Gaza, toda ela, seja espelho da cidade fantasma do deserto de Negev.
Tradução Caia Fittipaldi
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