Para enfrentar guerra da informação, Bolívia lança jornal estatal
No dia 22 de janeiro, começou a circular na Bolívia mais um jornal, "El Cambio. Não se trata de mais um jornal, mas sim de um diário estatal. Segundo o diretor do novo diário, Delfin Arias Vargas, a missão do novo jornal não é a de ser governamental. "Esse jornal não pode ser do governo, ele é estatal. Estamos manejando a informação como pensamos que se deve, como um bem social ao qual o povo boliviano tem direito", explica Vargas.
Spensy Pimentel - Para Agência Carta Maior
LA PAZ - Em 22 de janeiro, mesma data em que o presidente Evo Morales Ayma completou três anos à frente do governo boliviano e apenas três dias antes do referendo popular que consagrou a nova Constituição do país, começou a circular na Bolívia mais um jornal, El Cambio. A ver: nao se trata de mais um jornal, mas sim de um diário estatal. "A verdade nos faz livres" é o mote que acompanha o título do jornal em sua capa. E foi de liberdade jornalística que falou Evo na entrevista em que lançou a publicaçao: "[Aos jornalistas do novo diário] lhes pedimos não tergiversar nem mal-interpretar, como fazem alguns meios de comunicação". "Todos mentem e por isso precisamos ter nosso próprio diário. Pela primeira vez o Estado terá seu próprio jornal, o qual será distribuído todo dia com a verdade."
O diretor do novo diário, Delfin Arias Vargas, explica que foram dois os estopins para a decisão de lançar o jornal: primeiro, a forte campanha dos meios de comunicação contra a nova Constituição, ao longo dos últimos meses; segundo, uma reportagem do jornal La Prensa, em dezembro, que acusou Evo de estar vinculado aos donos de 33 caminhões de contrabando que foram liberados de forma irregular num posto aduaneiro da região de Cobija - fato ocorrido em agosto. A relação de Evo com os criminosos seria provada por um vídeo distribuído por um deputado da oposição - ao qual o governo acusou de ter forjado a suposta prova.
Mas a missão do novo jornal, que vem sendo publicado em formato tablóide, com 16 páginas, não é a de ser "pró-governamental", diz Delfin, que encontramos na última sexta-feira em seu escritório ainda improvisado, nas dependências do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR), no bairro de Sopocachi, em La Paz. "Esse jornal não pode ser do governo, ele é estatal. Estamos manejando a informação como pensamos que se deve, como um bem social ao qual o povo boliviano tem direito*", vai explicando ele, em meio a interrupções de vários pedidos para assinar ordens de compra de materiais ou de gente que lhe avisa das providências que estão sendo tomadas para transformar o antigo depósito em uma redação jornalística. Pudera, entre a ordem de Evo para que fosse formado o diário, em 4 de janeiro, e ida de sua primeira edição às bancas, passaram-se meros 18 dias, segundo conta o jornalista.
A rapidez foi possível, conta ele, porque a base da equipe de El Cambio foi formada a partir dos profissionais da Agência Boliviana de Informação (ABI), a qual era comandada por Delfin até o inìcio do ano. Outra parte dos profissionais foi selecionada nas últimas semanas. "Aqui não há militantes, há jornalistas profissionais. Em nenhum momento se perguntou se eram filiados a algum partido ou movimento social, o que examinamos foi seu currículo profissional*", conta ele, que, junto com parte dos demais jornalistas que chefiam a equipe de 30 pessoas, atuou nos anos 80 no jornal Presencia. Esse diário, conta ele, era ligado à Igreja Católica e foi referência de bom jornalismo no país até o início dos anos 90.
Depois da passagem pelo Presencia, Delfin conta que ainda atuou alguns anos na imprensa comercial do país, em jornais como La Razón e La Prensa: "Conheço de dentro como esses jornais manejam a informação. Antigamente ainda era possível atuar porque havia um respeito à notícia, não a manipulavam como agora, restringiam-se às páginas de opinião. Hoje estão lidando com a informação sem nenhum respeito, tratam-na como bem comercial, não social*". A subida ao poder de Evo gerou efeitos poderosos na mídia comercial, segundo ele: "Esse respeito à informação ocorria quando não havia ameaca ao velho sistema político. Quando ele caiu, com o início do governo de Evo, os meios de comunicação viraram trincheiras, hoje eles fazem oposição política frontal*".
O jornalista conta que a direita recebeu com agressividade a criaçao de El Cambio: "Dizem que estamos violando a liberdade de expressão. Mas olhe como está o país, apesar de se terem cometido vários abusos, não há nenhum jornalista preso ou processado aqui. A liberdade de imprensa é plena na Bolívia e não vamos permitir que ela seja rompida. Só que não podemos também permitir que ela não seja usada para tratar a informação como bem social que é".
Na primeira edição de El Cambio, que imprimiu cerca de 5 mil exemplares distribuidos pelo país - a tiragem ainda está aumentando, conforme a capacidade de distribuição, e ainda não está estabilizada -, foi publicada uma entrevista exclusiva com Evo. Delfin foi um dos entrevistadores e conta que o próprio presidente lhe afirmou, logo após esse encontro: "Ele nos disse que está apoiando o jornal, mas não quer propaganda do governo, quero que dêem informações corretas sobre nossa gestão. 'Vocês devem dar uma aula de jornalismo aos meios comerciais*', ele completou".
Mesmo com o aval público de Evo, Delfin conta que foi procurado por diversos dirigentes partidários e de movimentos sociais na semana seguinte ao lançamento do jornal: "Cada um quer nos dar sua receita, eles nos dizem 'agora temos nosso jornal, vamos poder golpear a direita também', e eu até entendo, porque estão desesperados, para que haja mais meios alternativos no país. Só que o que nós faremos será simplesmente tratar a informação como bem social, com um manejo plural, responsável e veraz da informação. Isso nos fará independentes".
Para ele, comunicação "estatal" é algo muito diferente de simplesmente "defender o governo": "Quem tem de fazer defesa do governo é o Soberania, que é o semanário do MAS [partido de Evo]. Nós somos outra coisa, não vamos virar governamentais". Ele tampouco pensa em concorrer com a mídia comercial: "Nós não queremos nos comparar com ninguém, só queremos ser uma alternativa para a população".
A receita da equipe de Delfin para o diário estatal inclui espaço inclusive para a oposição ao governo. "Eu tenho pedido à equipe mais presença da oposição, aliás. Se dizem algo que merece destaque, tem de estar no jornal", diz ele, quando pergunto se não houve reclamação de algum integrante do governo pelo destaque em capa dado na edição do dia da entrevista a declarações de Ruben Costa, prefeito de Santa Cruz que é um dos mais duros adversários do governo.
Na seção internacional, El Cambio vem publicando artigos de diversas fontes, inclusive desta Carta Maior. O futebol também é destaque. No dia em que conversamos, o Cambio tambem destacava na capa a derrota do Real Potosí para o Palmeiras, por 5 a 1. "Neste país, somos todos fanáticos por futebol, do motorista de ônibus ao presidente. Cobrir futebol aqui é um serviço social. No futebol, quando joga nossa seleção nacional, nao há 'media luna', estamos todos unidos". diz ele, em referência à região oriental do país, foco da oposição e de idéias separatistas.
Os próximos passos do diário incluem a instituição de mecanismos de controle social*, agora consagrados pela nova Constituição: "O mecanismo não está definido. Vamos fazer, só que ainda não sabemos como. Por enquanto, estamos tratando de trazer pluralidade às páginas de opinião". Para Delfin, o maior desafio é a auto-sustentação: "É o mais importante para nós. Esse diário não pode ser um peso para o Estado". Por enquanto, o jornal tem publicado anúncios de empresas estatais e é vendido em banca a 2 bolivianos (o equivalente a R$ 0,70).
*Grifos nossos.
O diretor do novo diário, Delfin Arias Vargas, explica que foram dois os estopins para a decisão de lançar o jornal: primeiro, a forte campanha dos meios de comunicação contra a nova Constituição, ao longo dos últimos meses; segundo, uma reportagem do jornal La Prensa, em dezembro, que acusou Evo de estar vinculado aos donos de 33 caminhões de contrabando que foram liberados de forma irregular num posto aduaneiro da região de Cobija - fato ocorrido em agosto. A relação de Evo com os criminosos seria provada por um vídeo distribuído por um deputado da oposição - ao qual o governo acusou de ter forjado a suposta prova.
Mas a missão do novo jornal, que vem sendo publicado em formato tablóide, com 16 páginas, não é a de ser "pró-governamental", diz Delfin, que encontramos na última sexta-feira em seu escritório ainda improvisado, nas dependências do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR), no bairro de Sopocachi, em La Paz. "Esse jornal não pode ser do governo, ele é estatal. Estamos manejando a informação como pensamos que se deve, como um bem social ao qual o povo boliviano tem direito*", vai explicando ele, em meio a interrupções de vários pedidos para assinar ordens de compra de materiais ou de gente que lhe avisa das providências que estão sendo tomadas para transformar o antigo depósito em uma redação jornalística. Pudera, entre a ordem de Evo para que fosse formado o diário, em 4 de janeiro, e ida de sua primeira edição às bancas, passaram-se meros 18 dias, segundo conta o jornalista.
A rapidez foi possível, conta ele, porque a base da equipe de El Cambio foi formada a partir dos profissionais da Agência Boliviana de Informação (ABI), a qual era comandada por Delfin até o inìcio do ano. Outra parte dos profissionais foi selecionada nas últimas semanas. "Aqui não há militantes, há jornalistas profissionais. Em nenhum momento se perguntou se eram filiados a algum partido ou movimento social, o que examinamos foi seu currículo profissional*", conta ele, que, junto com parte dos demais jornalistas que chefiam a equipe de 30 pessoas, atuou nos anos 80 no jornal Presencia. Esse diário, conta ele, era ligado à Igreja Católica e foi referência de bom jornalismo no país até o início dos anos 90.
Depois da passagem pelo Presencia, Delfin conta que ainda atuou alguns anos na imprensa comercial do país, em jornais como La Razón e La Prensa: "Conheço de dentro como esses jornais manejam a informação. Antigamente ainda era possível atuar porque havia um respeito à notícia, não a manipulavam como agora, restringiam-se às páginas de opinião. Hoje estão lidando com a informação sem nenhum respeito, tratam-na como bem comercial, não social*". A subida ao poder de Evo gerou efeitos poderosos na mídia comercial, segundo ele: "Esse respeito à informação ocorria quando não havia ameaca ao velho sistema político. Quando ele caiu, com o início do governo de Evo, os meios de comunicação viraram trincheiras, hoje eles fazem oposição política frontal*".
O jornalista conta que a direita recebeu com agressividade a criaçao de El Cambio: "Dizem que estamos violando a liberdade de expressão. Mas olhe como está o país, apesar de se terem cometido vários abusos, não há nenhum jornalista preso ou processado aqui. A liberdade de imprensa é plena na Bolívia e não vamos permitir que ela seja rompida. Só que não podemos também permitir que ela não seja usada para tratar a informação como bem social que é".
Na primeira edição de El Cambio, que imprimiu cerca de 5 mil exemplares distribuidos pelo país - a tiragem ainda está aumentando, conforme a capacidade de distribuição, e ainda não está estabilizada -, foi publicada uma entrevista exclusiva com Evo. Delfin foi um dos entrevistadores e conta que o próprio presidente lhe afirmou, logo após esse encontro: "Ele nos disse que está apoiando o jornal, mas não quer propaganda do governo, quero que dêem informações corretas sobre nossa gestão. 'Vocês devem dar uma aula de jornalismo aos meios comerciais*', ele completou".
Mesmo com o aval público de Evo, Delfin conta que foi procurado por diversos dirigentes partidários e de movimentos sociais na semana seguinte ao lançamento do jornal: "Cada um quer nos dar sua receita, eles nos dizem 'agora temos nosso jornal, vamos poder golpear a direita também', e eu até entendo, porque estão desesperados, para que haja mais meios alternativos no país. Só que o que nós faremos será simplesmente tratar a informação como bem social, com um manejo plural, responsável e veraz da informação. Isso nos fará independentes".
Para ele, comunicação "estatal" é algo muito diferente de simplesmente "defender o governo": "Quem tem de fazer defesa do governo é o Soberania, que é o semanário do MAS [partido de Evo]. Nós somos outra coisa, não vamos virar governamentais". Ele tampouco pensa em concorrer com a mídia comercial: "Nós não queremos nos comparar com ninguém, só queremos ser uma alternativa para a população".
A receita da equipe de Delfin para o diário estatal inclui espaço inclusive para a oposição ao governo. "Eu tenho pedido à equipe mais presença da oposição, aliás. Se dizem algo que merece destaque, tem de estar no jornal", diz ele, quando pergunto se não houve reclamação de algum integrante do governo pelo destaque em capa dado na edição do dia da entrevista a declarações de Ruben Costa, prefeito de Santa Cruz que é um dos mais duros adversários do governo.
Na seção internacional, El Cambio vem publicando artigos de diversas fontes, inclusive desta Carta Maior. O futebol também é destaque. No dia em que conversamos, o Cambio tambem destacava na capa a derrota do Real Potosí para o Palmeiras, por 5 a 1. "Neste país, somos todos fanáticos por futebol, do motorista de ônibus ao presidente. Cobrir futebol aqui é um serviço social. No futebol, quando joga nossa seleção nacional, nao há 'media luna', estamos todos unidos". diz ele, em referência à região oriental do país, foco da oposição e de idéias separatistas.
Os próximos passos do diário incluem a instituição de mecanismos de controle social*, agora consagrados pela nova Constituição: "O mecanismo não está definido. Vamos fazer, só que ainda não sabemos como. Por enquanto, estamos tratando de trazer pluralidade às páginas de opinião". Para Delfin, o maior desafio é a auto-sustentação: "É o mais importante para nós. Esse diário não pode ser um peso para o Estado". Por enquanto, o jornal tem publicado anúncios de empresas estatais e é vendido em banca a 2 bolivianos (o equivalente a R$ 0,70).
*Grifos nossos.
Um comentário:
Sensacional! Muito, mas muito bom mesmo!
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