Por Ayrton Centeno no Brasília Confidencial
Jornalismo, assim com J maiúsculo, não depende necessariamente do poderio econômico do veículo. Um pequeno e audacioso jornal de Porto Alegre possui um troféu que nenhum diário dos grandes conglomerados da mídia do Rio Grande do Sul pode ostentar: é dono, na categoria nacional, de um Prêmio Esso de Jornalismo, o mais disputado da imprensa brasileira. Sua trajetória soma muitas outras premiações, prova da excelência do seu trabalho, malgrado seus parcos recursos. Entre suas vitórias figuram, por exemplo, o prêmio da Associação Riograndense de Jornalismo (ARI) e outro Esso, este regional, ambos em 2001. Naquele ano foi premiado por narrar, com começo, meio e fim, a mais alentada falcatrua da história do Rio Grande do Sul e uma das maiores do Brasil. Porém, se de um lado foi premiado, de outro foi condenado. Acabou punido pela prática de jornalismo, aparentemente um crime hediondo naquele estado outrora “o mais politizado do Brasil”, hoje carcomido pela autocomplacência.
O pecado do jornal Já e do seu editor, Elmar Bones da Costa – piloto do lendário Coojornal, alternativo que se tornou referência jornalística nos anos de chumbo ao lado de O Pasquim, Opinião, Movimento, Ex e Versus – foi fazer aquilo que os flácidos jornalões não fizeram. Cedendo à tentação de uma pauta arrebatadora com fôlego de romance policial, desbravou uma monumental papelada, checou versões e realizou entrevistas para contar uma fraude ocorrida no fim dos anos 1980 que surrupiou R$ 800 milhões – em valores atualizados – dos cofres de um Estado empobrecido.
Como condimento da trama, duas mortes brutais: uma garota de programa jogada nua do 14º andar de um edifício, no centro da capital gaúcha, e o assassinato, com um balaço no olho direito, daquele que é apontado como o arquiteto da falcatrua. Mais um assalto à mão armada, uso de drogas, uma CPI e a letargia do Judiciário que há uma década e meia ainda não responsabilizou ninguém pela pilhagem. E, como se fosse necessário mais um tempero, a vítima fatal e artífice do rombo era diretor da Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), nomeado por exigência de seu irmão, o então deputado estadual Germano Rigotto (PMDB). Deputado federal por três legislaturas, Rigotto seria, mais tarde, líder do Governo Fernando Henrique Cardoso na Câmara Federal e governador do Estado. Em 2010, é o candidato de seu partido ao Senado.
E é a família Rigotto, na pessoa de sua matriarca, dona Julieta Rigotto, mãe de Lindomar e Germano, que levou às cordas o Já e seu jornalismo destemido. Os Rigotto atacaram em dois fronts. À luz do Código Penal, o editor, que também assinou a reportagem, foi acusado de “calúnia e difamação”. A juíza Isabel de Borba Lucas, da 9ª. Vara Criminal, afirmou que o jornal visou “o interesse público” e “em nenhum momento” teve por intenção “ofender o falecido Lindomar Rigotto” e concluiu pela absolvição. No cível, após vencer em primeira instância, o jornalista sofreu um revés no Tribunal de Justiça, em 2003, sendo condenado por “dano moral” por atingir “a memória do falecido”. Desde então, o torniquete em torno do Já e do seu editor aperta-se cada vez mais. Perdeu sede, profissionais e anunciantes, sofreu uma intervenção judicial e, em meio a aperto tão grande, as contas bancárias dos dois sócios foram bloqueadas no mês passado. A ideia, presume-se, é matar não só o jornal como os jornalistas à míngua.
Com 40 anos de profissão, é o segundo processo na carreira de Elmar Bones da Costa. O primeiro levou-o à prisão por publicar no Coojornal documentos secretos do Exército sobre as guerrilhas do Vale do Ribeira e do Araguaia. Era 1980, o Brasil vivia sob a ditadura militar e o absurdo tornava-se, vamos dizer, auto-explicável pelas circunstâncias históricas. Agora, em plena democracia, Elmar Bones não consegue entender como, sem que seja apontado qualquer erro na reportagem, sua veracidade resulte penalizada. O absurdo, portanto, é de grandeza superior.
Tudo acontece sem que a mídia regional emita uma vírgula sobre o assunto. Como se fosse decisivo sufocar sob o silêncio qualquer registro do que está se passando. Mas este muro tem suas fissuras e, através delas, as agruras do Já ganharam a internet e se reproduzem em e-mails, blogs e sites. E, agora, nesta semana, os jornalistas gaúchos estão lançando o movimento “Resistência Já” para levar a campanha às ruas, envolvendo também atores, músicos, fotógrafos, cineastas, escritores e outros profissionais da palavra e da expressão. Na percepção deles, não se trata apenas de um pequeno jornal com tiragem de 5.000 exemplares e de seu editor. A carga simbólica dos acontecimentos informa que existe muito mais em jogo.
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