24 de setembro de 2005

PÉ NA PORTA DO BARRACO E PÉ NA PORTA DA DASLU

Em seu editorial do dia 13 de julho de 2005, o Jornal da Band da Rede Bandeirantes de Comunicação, denunciou àquilo que considerou uma "ação pirotécnica" da Polícia Federal, na operação empreendida contra a Loja Daslu. Esta loja foi alvo da “Operação Narciso”, que investigava essa empresa há dois anos por sonegação fiscal e formação de quadrilha.

Há momentos em que a classe dominante perde a compostura e o senso mais elementar. A investida raivosa da Band contra a Polícia Federal e, por extensão, ao aparelho de Estado como um todo (pois esta polícia apenas cumpria determinação do Ministério Público), bem demonstra como a “elite” entende o primado da lei: ela é boa para os pobres, mas não se aplica às donas de butiques que têm, como clientes, a nata da burguesia paulista. Este editorial é bem revelador, na medida em que expõe como os abastados se movem corporativamente na defesa de seus interesses. A Bandeirantes critica a Polícia Federal por ainda não ter vasculhado os computadores do ex-tesoureiro do PT, mas não se perturba com os fatos que deflagraram a Operação Narciso. Pode-se inferir, assim, qual o entendimento desta empresa de mídia do que deve ou não ser configurado como crime. Acostumados a estarem acima da lei e a agir impunemente, usam todo o seu poder para manter o status transgressor. E sequer tentam disfarçar essa intenção.

O escabroso editorial, colocado desavergonhadamente no ar em horário nobre e em rede nacional, desnuda, também, o que essa casta entende por cidadania, quando, em tese, defende esse princípio em seu “discurso”. Ele põe a descoberto a existência de duas "categorias" de cidadania. Uma para qual a lei não se aplica e outra para qual a lei é pouca, posto que há no Brasil quem defenda a redução da idade penal e afirme a necessidade de se adotar a pena de morte. A própria empresa Bandeirantes se atira de corpo e alma numa campanha contra o desarmamento, sob o pretexto de que o Estado não consegue garantir a segurança da população. Mas até onde esta empresa considera legítimo o uso que um cidadão possa fazer da arma que possui? Estaria o cidadão legitimado, por exemplo, a usar a sua arma para se defender dos grandes sonegadores como a dona da Daslu? Pois, vejamos: se considerarmos que tais sonegadores privam o Estado dos recursos necessários para investimento em saúde, educação e em programas de combate à fome, estamos diante daquilo que poderíamos configurar como crime hediondo e uma ameaça à paz social, tão passível de reação por parte de um cidadão como no caso dele se sentir ameaçado por um assaltante. Estaria a Bandeirantes disposta a endossar essa tese? Claro que não, pois isso equivaleria a um suicídio de classe. Equivaleria prolatar uma sentença contra eles próprios.

A alegação costumeira de que o Estado brasileiro padece de uma voracidade fiscal e de ser ineficiente na aplicação dos recursos arrecadados, seria a justificativa da sonegação por parte das "colunáveis" que, hoje, consideram-se prejudicados pelas investigações. Por outro lado, a aplicação de recursos públicos no setor privado, na maioria das vezes incapaz de competir economicamente por pura incompetência de seus gestores, é considerada como algo "natural" por essas mesmas pessoas. Claro que esses “empresários”, sempre prontos a apontarem o dedo em riste contra o Estado para acusá-lo de ineficiente, não se consideram parte dessa ineficiência. O empresariado da mídia não é a exceção da regra, visto que reivindica, constantemente, recursos públicos para sanear suas dívidas.

Se a sonegação pode ser legitimada pelos motivos acima expostos, também o cidadão comum pode pegar uma arma e se apropriar, da maneira que lhe convier, de tudo aquilo que ele considera necessário ao seu bem estar, já que o Estado não lhe garante o mínimo, ou seja, saúde e educação. Se as classes dominantes podem justificar seus crimes, os menos aquinhoados poderiam fazê-lo também. É muito comum ouvir, nos veículos dessas empresas de mídia, inflamados discursos contra, por exemplo, os sem-terra quando invadem propriedades privadas, ocupando, pela força, aquilo que não seria deles. Mas estas mesmas empresas estão sempre prontas a sair em defesa de empresários que sonegam, como se isso também não fosse uma apropriação indevida daquilo que não lhes pertence.

Talvez só uma coisa explique o fato dessa empresa de mídia sair tão desavergonhadamente em defesa desse crime de sonegação: o pânico que tomou conta dos donos do poder que, de uma hora para outra, vêem-se submetidos, como os demais mortais, ao cumprimento das normas legais. Se serão condenados é outra questão. Mas o fato é que o Estado, através de seus instrumentos, entre eles a Polícia Federal, faz cumprir a lei. Agora, cabe ao Judiciário, munido das provas, que não faltam, condenar.

A indignação da Bandeirantes com utilização de metralhadoras pela Polícia Federal na Operação Narciso, é surrealista. Cabe lembrar aos responsáveis por essa aberração travestida de editorial, que a polícia foi munida pelos seus instrumentos de trabalho, ou seja, as armas e os mandatos. Ninguém “pedalou” a porta da Daslu. Sintomaticamente, a mídia ataca o elo mais "fraco" dessa cadeia: a Polícia Federal. Mas não tece um comentário sequer contra o Ministério Público, que comandou as investigações, e muito menos contra o Poder Judiciário, que expediu os mandatos de busca e prisão. Toda a operação foi realizada em conformidade com a lei. Os donos da mídia se fazem de bobos.

Uma outra possível explicação para tamanho mal-estar em relação à Polícia Federal, sejam os dois anos de investigação sigilosa, sem os costumeiros "vazamentos" do tipo "fulana, pega o teu jatinho e dá um tempo fora do país, até as coisas esfriarem". Para os herdeiros das capitanias hereditárias, que, agora, estabeleceram os seus feudos dentro da mídia, a lei é para ser cumprida no entorno da Daslu, bem como as armas são para ali serem utilizadas. Imagine-se um shopping, em cujas lojas trabalham "socialites", passarem pelo constrangimento de uma batida policial? Isso fica bem nas favelas ao redor da loja, mas é de muito “mau gosto”, quando se trata do beautifle people. Antônio Carlos Magalhães, figura nefasta da vida pública brasileira, também dono de empresas de mídia, abalou, sem pestanejar, uma das mais importantes instituições da República ao espionar o painel de votação do Congresso. Mas comoveu-se às lágrimas ao saber que a dona da Daslu (sua afilhada) fora detida. Definitivamente, a lei não foi feita para eles.

A alegação de que não foi permitido o direito de defesa também segue essa mesma linha surreal, se considerarmos o fato de que essas pessoas têm, ao seu dispor, exércitos de advogados sempre em prontidão para lhes livrar a cara ao menor sinal de perigo. Na verdade, o “editorial” revela o profundo desconforto e, por que não dizer, o temor que os donos do poder sentem ao verem investigações policiais sendo criteriosamente conduzidas, com recolhimento de provas, de uma forma tal como nunca antes foi feito no Brasil. O problema está em que, agora, as investigações atingiram um segmento da sociedade brasileira que sempre se considerou acima da lei.

Como cidadão, reconheço o papel do Estado quando assume a sua função reguladora das relações sociais, pois entendo que ele me representa, como de resto a toda a sociedade. Endosso o seu papel repressor, quando se faz necessário enquadrar todos os brasileiros dentro do império da lei, como foi feito no caso da Daslu. E exijo que as empresas de mídia cumpram a sua função social, já que são concessões públicas, pelo menos no caso da mídia eletrônica (rádio e TV). Ao contrário, o que se vê, é a utilização dessas mídias na defesa dos interesses e dos privilégios das minorias abastadas. Se alguém quer responsabilizar o Estado por alguma coisa, que o faça pela sua negligência em regulamentar o setor da comunicação. A incapacidade do atual Governo em perceber o quanto isso é fundamental, explica a sua incompetência na condução do episódio do Conselho Federal de Jornalismo. Isso acabou por destruir o instrumento regulador que possibilitaria à sociedade coibir verdadeiras bandalheiras, como esta, do "editorial" da Rede Bandeirantes de Comunicação.

Eugênio Neves

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