A RBS promoveu, no Centro de Eventos da PUC/RS, no dia 31/10/06, às 19h, mais uma edição do RBS Debates com o tema “TV Digital. Mais que uma evolução, é uma revolução.”. O palestrante foi Carlos Brito da Central Globo de Engenharia e os debatedores foram Ana Esteves, diretora de mídia da DCS Comunicações, Prof. Dr. Eduardo Campos Pellanda, Coordenador do Centro de Produção Multimídia – FAMECOS/PUCRS, Fernando Ferreira, Diretor de Tecnologia da RBS e Raul Costa Jr., Diretor de Telejornalismo da RBS/TV. Este evento foi realizado dentro do 19º Set Universitário da FAMECOS/PUCRS.
Um público significativo acorreu ao evento e lotou o auditório. Para impressioná-lo, a RBS montou um cenário na entrada: um corredor escuro, dispondo quatro televisões no ambiente, sendo duas TVs analógicas e duas televisões digitais, lado a lado, transmitindo imagens de futebol. No auditório, em cima de cada cadeira, os participantes encontravam uma papeleta para escreverem suas perguntas. Além disso, esse ambiente dispunha de três telões, sendo que um deles, o maior e no centro, era de alta definição. Cabe destacar a presença de vários seguranças na entrada e dentro do auditório.
Os trabalhos foram abertos por um apresentador da RBS que, em seguida, passou a palavra para Jaime Sirotsky, Presidente do Conselho de Administração da RBS. Este deu as boas vindas ao público, fez uma rápida introdução sobre o evento e usou técnicas de descontração com a platéia. Após, a palavra foi passada a Carlos Brito.
O palestrante iniciou a sua fala, afirmando que a televisão aberta está obsoleta, pois um aparelho fabricado há 40 anos atrás funcionaria nos dias de hoje, assim como um aparelho produzido atualmente também funcionaria naquela época. Por isso era muito importante melhorar a tecnologia da TV brasileira, optando pela TV digital agora, se não teríamos um atraso de mais 20 anos neste setor.
Estabelecida a urgência e a necessidade de uma mudança tecnológica, Brito passa a defender a opção pelo sistema japonês de TV digital, o ISDB. Afirma que tal sistema é o melhor que tem no mundo, além de possibilitar a gratuidade na transmissão da programação. Enfatiza que a adoção de qualquer outro sistema acarretaria custos ao usuário. Este tema da gratuidade foi a pedra angular da sua exposição.
Para ilustrar a sua fala, Carlos Brito apresentou o vídeo institucional da Rede Globo sobre a TV digital, onde a ex-atriz e atual apresentadora Sandra Annenberg exalta as maravilhas da imagem e do som, da portabilidade e da mobilidade só permitidas pelo sistema ISDB japonês. Não são citadas no vídeo, outras duas características, as mais importantes, diga-se de passagem, e que serão sub-avaliadas durante toda a explanação de Brito: a possibilidade de multiprogramação e a interatividade.
Quando ele tratou destes dois temas, percebeu-se que o fez de forma reticente, como quem evita se aprofundar do tema, gaguejando em alguns momentos inclusive. Mesmo assim, ele teve que admitir para ser minimamente fiel ao histórico dos acontecimentos, que esses pontos foram extremamente polêmicos e houve grandes disputas em torno deles durante as discussões sobre a escolha do modelo de TV digital a ser adotado pelo Brasil.
Até então, Brito, limitava-se a fazer uma explanação técnica, apesar de omitir uma informação importantíssima ao público presente: o decreto que instituiu o Sistema Brasileiro de TV Digital em 2003, com a participação de 20 consórcios universitários que desenvolveu um sistema brasileiro próprio de TV digital, entre os quais a própria PUCRS, fator de disputas políticas até o presente momento.
Quando passou à defesa do modelo japonês de TV digital efetivamente, alinhou os seguintes argumentos:
- a alta definição da TV HDTV se deve a um maior nº de linhaturas na tela;
- tal característica traz problemas à multiprogramação, porque gravar em HD exige muita memória de imagem e som;
- o modelo te TV brasileira é vencedor. A população aprova a TV;
- não temos mercado publicitário para bancar novas linhas de programação que o sistema possibilita, já que somos um país pobre. Ficaria inviável pagar duas Veras Fischer para produzir duas novelas, por exemplo;
- não haveria possibilidade de gerar quatro programas de qualidade ao mesmo tempo e mantendo a gratuidade da TV.
O que ficou evidente foi a preocupação estritamente comercial da sua explanação. Brito omitiu da platéia aspectos importantíssimos do sistema japonês:
1º) A alta definição da imagem e do som se dá a custa da ocupação quase total do espectro de transmissão.
2º) Esta utilização do espectro elimina ou reduz significativamente a possibilidade da multiprogramação e interatividade pela exigência de canais de retorno.
3º) A defesa do conceito de uma “televisão vencedora” é altamente falaciosa, na medida em que essa visão de televisão foi imposta pelo mercado e não uma escolha dos tele-espectadores. Nunca houve uma discussão séria, no Brasil, para saber se realmente o público está satisfeito com o modelo de TV existente no país.
4º) A alegação de que não há mercado publicitário revela o quanto as preocupações de Brito são limitadas aos interesses comerciais. Sua alegação de que não se pode pagar “duas Veras Fischer” dá bem a medida de como ele entende a multiprogramação, ou seja, ela seria apenas mero clone do modelo de televisão que ele considera “vencedora”.
5º) O que Brito não admite, mas fica evidente, é o temor de que a multiprogramação quebre o paradigma da TV comercial, sustentada pelas verbas publicitárias. Além disso, as empresas de comunicação não querem investir em programações distintas, o que implicaria em contratação de mais profissionais e gastos em mais recursos técnicos.
Se o conceito de multiprogramação foi apresentado desta forma, o de interatividade foi dramático. Para defender o que ele entende por este conceito, Brito apresentou os seguintes exemplos:
- uma pessoa interessada em comprar um automóvel, poderia acessar comerciais interativos, onde avaliaria características do produto;
- ou, pasmem, os tele-espectadores poderiam votar em quem fica ou sai do Big Brother.
Depois desses edificantes exemplos, prosseguiu na sua explanação e mostrou que ele ou a empresa onde trabalha possui preocupações sociais. Segundo Brito, a interatividade está comprometida, uma vez que exige canais de retorno e grande parte da população brasileira não possui linha telefônica ou Internet. Assim, fica resolvida a questão da interatividade: não se cogita e não se fala mais nisso. Por outro lado, defender uma política pública de inclusão digital e pressionar empresários que foram presenteados com estatais sub-avaliadas nas privatizações da telefonia a investirem em infra-estrutura são ações que nem sequer entram na pauta das discussões sobre TV digital.
Carlos Brito ainda defendeu, sem meias palavras, a HDTV como a grande revolução tecnológica da televisão, que “veio para ficar”. Uma temeridade, para quem afirmou, minutos antes, que os ipods brevemente serão capazes de armazenar todos os conteúdos áudios-visuais produzidos pela humanidade em toda a sua História. Se a evolução tecnológica ocorrer de forma tão vertiginosa como ele vaticina, quem garante que o HDTV também não se transforme vertiginosamente nesta peça tecnológica obsoleta, tal qual a TV analógica, antes mesmo da TV digital ser implantada em todo o Brasil? Quem pode afirmar, com certeza, que rumos tomarão a tecnologia das comunicações?
A impressão que se teve, é que Brito estava mais empenhado em fazer um comercial de venda casada do sistema japonês de TV digital com a produção de aparelhos HDTV, do que tratar da revolução tecnológica que o debate anunciava. Isso ficou tão evidente, que três estudantes secundaristas de uma escola técnica de Porto Alegre, em conversa após o “debate”, observaram que “um executivo da Samsung não teria feito melhor”.
Terminada a sua explanação, passou-se ao que eles denominaram de debate, mas que foi, na verdade, uma entrevista. Os “debatedores”-entrevistadores perguntaram:
- Ana Esteves: relação da Globo com as empresas de publicidade em tempos de TV digital, uma abordagem puramente mercadológica.
- Eduardo Pellanda: mercado de trabalho para os alunos da Comunicação Social em tempos de digitalização da TV.
- Fernando Ferreira: pesquisa sobre interatividade pela Rede Globo. Chegou perto da questão importante, mas ao ouvir a resposta de que "a Globo não desenvolve pesquisa nesta área", ficou satisfeito.
- Raul Costa Jr.: questões irrelevantes como os efeitos da alta definição de imagem sobre a maquiagem dos atores e cenários e problemas legais decorrentes da nova tecnologia, do tipo, o sujeito vai com a amante no campo de futebol e, numa panorâmica das arquibancadas, poderá ser facilmente identificado pela esposa que está em casa. Cabe destacar, que Costa Jr. é a mesma pessoa que, numa audiência pública em Porto Alegre sobre a criação da ANCINAV, declarou em alto e bom som a sua visão de programação regional: não haveria sentido manter programações regionais, uma vez que nas cidades do interior nada acontece além dos salões de festa do Rotary Club.
Encerrada esta fase, abriu-se para as perguntas do público. A primeira pergunta foi encaminhada por escrito. A segunda foi feita ao microfone e aí se deu a polêmica. Heitor Reis, engenheiro civil em Belo Horizonte-MG, foi o primeiro da fila para perguntas ao microfone. Iniciou a sua fala, apresentando-se como integrante do FNDC (Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação) e falou da XIII Plenária ocorrida em Florianópolis entre os dias 20 a 22 de outubro. Quando iniciou a sua pergunta com a frase (mais ou menos assim) "Discutimos na Plenária que vivemos no mundo capitalista..." o mediador o interrompeu imediatamente, como se a palavra “capitalista” houvesse disparado um alarme. Heitor retomou, falou mais algumas palavras introdutórias de sua pergunta e mais uma vez foi interrompido pelo mediador em tom inquisitorial, exigindo que ele fosse “direto à pergunta”. Neste momento, uma pessoa da platéia, aos gritos, exigiu que deixassem Heitor Reis concluir a sua pergunta. Iniciaram-se as vaias e um pequeno grupo gritou “o povo não é bobo, abaixo a Rede Globo”. Heitor retoma o microfone e encerra a sua participação, perguntando, a Brito, se essa nova tecnologia iria concentrar ainda mais o monopólio da mídia. O mal-estar do palestrante e dos “debatedores”-entrevistadores era visível. Brito iniciou sua resposta, fazendo ironia sobre a suposta agressividade de alguns dos presentes, tergiversou e não respondeu a questão. Seguiram-se mais algumas perguntas ao microfone sobre mercado de trabalho e tecnologia, nenhuma delas provocando novas polêmicas.
O que nos impressionou foi a passividade do público presente, estimado em 1.200 pessoas pelos organizadores do evento, considerando-se que aquele não era um público qualquer e sim formado por estudantes universitários, entre os quais muitos do curso de jornalismo da própria PUCRS. Este público parecia curioso sobre TV digital, mas, exclusivamente, no que dizia respeito aos seus aspectos tecno-mercadológicos. Passou batida a questão do significado e do alcance político dessa nova tecnologia. O debatedor pintou um mundo cor-de-rosa e sem contradições, pronto para ser aceito sem qualquer questionamento. Muito pelo contrário: quando foi levantada a questão do monopólio das comunicações, criou um visível mal-estar, como se alguém estivesse ali para perturbar o bom andamento das relações entre futuros empregadores e candidatos a “bons” empregos.
Essas pessoas precisam entender que o modelo que está sendo imposto aos brasileiros é aquele que convém, antes de tudo, às empresas de mídia. Foi chocante constatar, que este público não consegue perceber que, se a TV digital fosse discutida ampla e abertamente pela sociedade, certamente, as possibilidades dessa nova tecnologia seriam exploradas ao máximo, ampliando em muitas vezes o mercado de trabalho. O mundo acadêmico que deveria ser o espaço do debate e das reflexões parece estar inexoravelmente atrelado aos interesses mesquinhos do capital, abrindo mão da sua autonomia. Vide a relação FAMECOS/RBS.
Já que Jaime Sirotsky concluiu a sua fala de abertura do evento contando uma piada, encerramos nosso artigo com uma pérola de um dos entrevistadores. Uma das respostas que chamou a atenção foi a do outro funcionário da RBS, Fernando Ferreira, que, ao responder a pergunta feita ao microfone por uma das presentes ao debate, sobre o papel do rádio na era digital, disse que ele tem lugar garantido, uma vez que “a TV digital não poderá ser usada, quando as pessoas estiverem no chuveiro, por isso o rádio será importante”. Esta afirmação nos tirou o sono e ficamos a conjeturar sobre qual seria o impedimento das pessoas assistirem TV digital no banho:
- o vapor d’água que embaça a tela? As TVs do futuro, provavelmente, virão com desembaçadores de “pára-brisa”.
- a umidade? As TVs serão à prova d’água.
- a porta do box atrapalha? É só abri-la. Tomando-se ao pé da letra as palavras alvissareiras de Carlos Brito e a sua crença inabalável na evolução tecnológica, quem poderá garantir que a própria porta do box não será uma TV digital?
E de mais a mais, depois que o ex-Governador do RS, Alceu Collares, instalou um telefone no banheiro do Palácio Piratini (dizem os maldosos que era para o caso de alguma necessidade), tudo é possível...
Claudia Cardoso e Eugênio Neves
Porto Alegre, 02/11/06
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