18 de março de 2007

Esquerda ressurge em livro de Tarso Genro
JOSIAS DE SOUZA
Folha de São Paulo. Brasil. Belo Horizonte, 31 de outubro de 2004.

Difícil distinguir hoje em dia esquerdistas de direitistas. Faltam referenciais. A mansidão do ex-PT no poder pôs em xeque a velha lenda de que esquerdistas comiam criancinhas.
A barba também já não serve de parâmetro. A rama que pende do rosto de Enéas Carneiro (Prona) humilha o bem-aparado feixe de fios que orna a face de Lula.
O guarda-roupa tampouco ajuda. Ao tradicional figurino bicho-grilo, a petista Marta Suplicy contrapôs modelitos Ives St. Laurent. Agora adornados com broches que trazem a estampa de Maluf.
De resto, a experiência comprova que, lançados ao mar do neoliberalismo, esquerdistas e direitistas nadam sincronizadamente. E morrem na mesma praia privativa do capital financeiro.
Num instante em que parecia impossível discernir Lula dos antecessores, chega às livrarias um livro revelador: "Esquerda em Progresso"* (Editora Vozes). Escreveu-o o ministro Tarso Genro (Educação), ideólogo do ex-PT.
Embora fina (125 páginas), a obra é ambiciosa. Propõe-se a traçar rumos para a "nova esquerda". Lendo-a descobre-se por que o desempenho do ex-PT no governo aproximou o partido de seus opostos. Genro declara-se simpático à tese de que "é necessário rebaixar o programa estratégico da emancipação, para colocar no centro da práxis a luta imediata por inclusão [...] e distribuição de renda".
No governo, diz Genro, o ex-PT privilegia a "segurança". Recusa-se a encarnar o papel de "vanguardista do tipo bolchevique". Almeja "um acordo com sentido policlassista". A exacerbação da "luta de classes" fragilizaria o governo. Diz o ministro: "Não há nenhum exemplo histórico de políticas transformadoras que não tenham combinado realismo e utopismo. Lênin, Rooselvelt, Mao, Deng, Getúlio Vargas, Lázaro Cárdenas, Kennedy, todos foram realistas e utópicos ao mesmo tempo." Para Genro, no "centro" do desafio da esquerda está o enfrentamento ao "processo de globalização financeira". Ditado "pelos Estados Unidos", produziu "uma ampliação desmesurada do sistema financeiro internacional, alienado da produção [...]".
No Brasil, escreve Genro, "as políticas sociais e o projeto econômico que começaram a ser implementados pelo governo Collor foram seguidas pelos governos de FHC". O tucanato "rapidamente deu efetividade ao projeto político do grande capital". Pior: "Sua base parlamentar, articulada fisiologicamente e reunindo as velhas e novas oligarquias, garantiu-lhe a inviabilização do projeto social contido na Constituição de 1988".
O ministro se exime de lembrar que o governo a que serve também toma a bênção ao "grande capital", come na mão da mesma "base parlamentar" fisiológica e rende homenagens aos oligarcas de sempre, Sarney entre eles.
Genro afirma que "a inserção subordinada do Brasil no sistema global" levou à "afirmação de um modelo econômico baseado no neo-rentismo especulativo". Propõe uma "ruptura com a globalização financeira". Silencia sobre o banquete que o companheiro Palocci serve aos neo-rentistas.
O ministro defende o "fechamento" da economia "em níveis que possam ser sustentados por novas alianças políticas internacionais". Ele é taxativo: "Não há a menor possibilidade de pensar-se em qualquer transformação [...] que tenha um caráter socializante ou socialista -do poder e da riqueza- sem que o país tenha uma ambição nacional que se materialize em um projeto nacional". Na arena política, Genro identifica a falência do modelo de representação. Abraça a "democracia direta". Que passa pela "exacerbação da consulta, do referendo, do plebiscito e de outras formas de participação".
Fala de uma "reengenharia institucional nos diversos níveis da federação". O modelo ideal contemplaria "uma estrutura parlamentar unicameral". Seus integrantes estariam sujeitos à cassação do mandato por "recall". Também o presidente da República teria de reconfirmar o próprio mandato em consultas anuais ao eleitorado.
Genro condiciona o sucesso do "controle democrático do Estado" a um ataque frontal ao "monopólio das comunicações". Acha que é preciso "desconstituir" o poder da mídia. A "manipulação da informação", diz ele, "tem sido fundamental para a implantação do projeto neoliberal [...]."
Recomenda a criação de "uma estrutura estatal de caráter político-administrativo", para regular a "liberdade de informação e de opinião, hoje totalmente comprometidas pela verdadeira ocupação que as elites fizeram dos meios de comunicação mais potentes e incidentes sobre a vida cotidiana". Haveria "um conselho permanente de democratização da informação, formado por representantes designados pelos três poderes e pelos partidos políticos, mas cuja composição majoritária seria formada por membros eleitos nos Estados".
A finalidade do conselho seria "regrar e vigiar a aplicação de regras que permitam liberdade de informação, livre trânsito de opiniões, obstrução de qualquer monopólio na área, bem como a elevação dos padrões éticos e culturais dos meios de comunicação".
Em resumo: o modelo petista exposto por Genro passa por um "realismo" que impõe ao brasileiro comum, eterno figurante de sua história, um novo período de espera antes de entrar em cena. E desemboca na "utopia" de um regime submetido a meios de comunicação subjugados.
* O nome correto do livro é Esquerda em Processo. Ed. Vozes, 2004.

Nenhum comentário: