Por Ayrton Centeno
Quando Collor aboletou-se (no bom sentido do termo) no poder, Ziraldo reparou que, naquela quadra da história, respirava-se um ar tão rarefeito que a imprensa alternativa fazia mais falta do que na ditadura militar. Falou isso impressionado com a sofreguidão com que a mídia cabocla dependurava-se no relicário das virilhas presidenciais dia sim outro também, causando até dissabores ao alvo de sua paixão. A ponto do proprietário do penduricalho bradar, um tanto desesperado, que tinha aquilo roxo... Tal devoção escrotal deletava, naquele momento, qualquer dúvida a respeito da infalibilidade do Napoleão das Alagoas. Passada a desilusão colorida, a mídia reencontraria seu mais verdadeiro e sincero amor. Nos anos FHC, agarrou-se com tal furor aos balangandãs sorbonianos, que nem um lança-chamas conseguiria afastar suas mãos daquela zona do agrião durante dois longos e tenebrosos mandatos. Ali, além da plena identificação ideológica, desenvolveu-se uma relação de comensalidade em que a adoração irrestrita era recompensada com a privatização das telecomunicações e a abertura de novas oportunidades de negócio.
Nariz de cera é o nome da conversa comprida aí de cima. Já foi um pecado mortal em jornalismo, hoje porém, nestes novos tempos, perdeu o status, foi relegado a mero pecadilho formal no cotejo com a abundância dos reais e fatais pecados, especialmente o veto à circulação das idéias e fatos, substituída pelo culto ao pensamento único e a fabricação do consenso. No discurso, pluralidade é a palavra na boca de todos os barões da imprensa. Na prática, é só um biombo para uma realidade inversa. Hoje, como na sacada de Ziraldo, todos os principais rádios, jornais, revistas e TVs do país dizem exatamente o mesmo sobre instituições e temas cruciais da realidade brasileira. Precisa-se de prova? Ok, qual a diferença no tratamento da reforma agrária, por exemplo, entre Estadão, Folha de São Paulo, O Globo e Jornal do Brasil? E do MST? Onde a distinção na abordagem do Governo Lula? E de uma figura como Evo Morales? E de Hugo Chávez?
O ogro que perturba o sono
Ah, Chávez é um caso à parte. Zero Hora é um dos veículos mais obsecados na luta sem trégua contra o presidente venezuelano. Chávez faz o papel, naqueles filmes noir, do sujeito arrastado para uma ruela erma e escura -- talvez chamada Liberdade de Expressão -- onde, dominado por dois brutamontes, vai ser soqueado implacavelmente por um terceiro. Existe para ser esmurrado. Na ausência de fatos reais, chega-se a produzir matérias tolas, pescadas na internet e cozinhadas na redação, com a única finalidade de desconstituí-lo. Foi o que aconteceu dia 30/09, dedicando-lhe uma página. No seu açodamento, porém, o diário dos Sirotsky abre a guarda e conta mais a seu próprio respeito do que pretende revelar sobre sua vítima.
No quadro “Fatos e mitos”, intitula-se uma das colunas “Parece mentira, mas é verdade”, enquanto a outra é “Parece verdade, mas é mentira”. Nesta, agrupam-se os boatos que circulam pela web. Mas é a primeira, onde residem os fatos -- deve-se entender fatos surpreendentes -- que ZH prepara a arapuca onde ela própria vai cair.
Depois da frase “o que ele (Chávez) já fez”, vem o rosário de façanhas supostamente espantosas da lavra do ogro abominável que perturba o sono midiático.
ZH diz que Chávez “fechou a RCTV, a maior e mais popular rede de televisão do país, que o criticava frequentemente”. Omite que, na verdade, o bolivariano negou, com o absoluto respaldo da lei, a renovação da concessão de uma emissora, um direito de qualquer governante de qualquer nação digna deste nome. Aliás, a RCTV já deveria ter sido cassada em 2002, pelo seu apoio ao golpe contra a constituição. Primeiro, ressalta-se o argumento patrimonialista, pretendendo-se que o espectro eletromagnético -- um bem de todos -- transforme-se em propriedade de particulares. Segundo, consagra-se a inimputabilidade das concessionárias que afirmam seu direito de atentar contra a democracia e de derrubar chefes de governo. Parece mentira mas é verdade: ZH acha pitoresco que uma emissora de TV não possa – ora, bolas! -- sequer conspirar contra o Estado Democrático de Direito. E, além disso, não tenha nem mesmo o direito de ficar com o que não lhe pertence.
Outra de Chávez que não desce pela garganta de ZH, é a idéia de inserir o adjetivo “bolivariana” entre “República” e “Venezuela”. Simon Bolívar, guru de Chávez, foi um precursor da integração latino-americana. No começo do século 18, advogava a existência de nações independentes, política e economicamente. Bizarro este Bolívar, também chamado El Libertador, por seu empenho para livrar os povos do continente do jugo europeu. Há algum motivo para torcer o nariz? Parece mentira, mas é verdade: ZH nunca achou curiosa e muito menos humilhante para a cidadania brasileira a existência de cidades, escolas, ginásios, ruas, praças, avenidas e rodovias pelo Brasil afora batizadas com nomes como Garrastazu Médici, Ernesto Geisel, João Figueiredo, Costa e Silva e Castelo Branco, os cinco ditadores do regime militar. Acha natural homenagear o jugo e engraçado homenagear a libertação...
Outro projeto, outro país, outra mídia
Mas nada se compara a perplexidade de ZH diante do fato de que Chávez “atacou o latifúndio”! Uau, atacar o latifúndio. Parece mentira, logo o latifúndio, esta coisa abençoada por Deus e bonita por natureza, ma-que-belê, a razão da simpatia, do poder do algo mais e da alegria... Ninguém imaginaria uma heresia tamanha. Mas de Belzebu é possível esperar tudo. Pois foi exatamente o que fez “O Mameluco”, como o chama o Estadão, também num momento de auto-revelação involuntária.
Bueno, o mínimo que se pode dizer é que Chávez fez uma coisa muito antiga. E que não deveria surpreender a ninguém. Dois milênios atrás, o tribuno Caio Graco “atacou o latifúndio” ao mandar distribuir terras em Roma. As revoluções francesa, russa, chinesa, cubana, mexicana, entre outras menos notáveis, também chutaram a bunda dos latifundiários. Mas não apenas a esquerda “atacou o latifúndio”. No Japão ocupado, pós II Guerra Mundial, o SCAP (Supreme Commander of the Allied Powers), sob a chefia do general Douglas MacArthur, quebrou o espinhaço dos senhores rurais, impondo-lhes uma reforma agrária radical que redistribuiu 70% das terras do país! E nenhuma propriedade rural ficou com mais de um mísero hectare! Estapafúrdio, o tal MacArthur, hein? Claro que tudo foi feito como uma vacina para conter a sedução dos pobres pelo comunismo na Ásia. O horror é que a reforma, mandando às favas os proprietários absenteístas e colocando “a terra na mão de quem nela trabalha”, como manda a divisa tão familiar, deu certo e pavimentou a estrada para o Japão moderno.
Nada, porém, como a História para ajudar a compreender porque a teologia sirostskiana considera blasfêmia atacar o latifúndio. Nada, talvez, explique melhor o rumo de duas civilizações do que a destinação dada à terra no Brasil e nos Estados Unidos. Enquanto Abraham Lincoln, durante o enfrentamento com as elites escravocratas do Sul, abria o Oeste para as levas de imigrantes através do Homestead Act, de 1862, as oligarquias igualmente escravocratas de Pindorama, já em 1850, editavam a Lei de Terras. Que tinha a finalidade justamente de impedir que os despossuídos – imigrantes europeus ou futuramente os negros libertos – tivessem seu pedaço de chão. Não adiantou a pregação de José Bonifácio que verberava o atraso do latifúndio escravista e sonhava com uma nação de pequenos proprietários livres, defendendo a reforma agrária, a revogação de sesmarias e a doação de lotes para “europeus pobres, índios, mulatos e negros forros”, conforme registrou nas suas “Lembranças e Apontamentos”, de 1821. Era outro projeto de país. Mas o latifúndio venceu e hoje somos o que somos. E temos a mídia que temos. Parece mentira, mas é verdade.
Quando Collor aboletou-se (no bom sentido do termo) no poder, Ziraldo reparou que, naquela quadra da história, respirava-se um ar tão rarefeito que a imprensa alternativa fazia mais falta do que na ditadura militar. Falou isso impressionado com a sofreguidão com que a mídia cabocla dependurava-se no relicário das virilhas presidenciais dia sim outro também, causando até dissabores ao alvo de sua paixão. A ponto do proprietário do penduricalho bradar, um tanto desesperado, que tinha aquilo roxo... Tal devoção escrotal deletava, naquele momento, qualquer dúvida a respeito da infalibilidade do Napoleão das Alagoas. Passada a desilusão colorida, a mídia reencontraria seu mais verdadeiro e sincero amor. Nos anos FHC, agarrou-se com tal furor aos balangandãs sorbonianos, que nem um lança-chamas conseguiria afastar suas mãos daquela zona do agrião durante dois longos e tenebrosos mandatos. Ali, além da plena identificação ideológica, desenvolveu-se uma relação de comensalidade em que a adoração irrestrita era recompensada com a privatização das telecomunicações e a abertura de novas oportunidades de negócio.
Nariz de cera é o nome da conversa comprida aí de cima. Já foi um pecado mortal em jornalismo, hoje porém, nestes novos tempos, perdeu o status, foi relegado a mero pecadilho formal no cotejo com a abundância dos reais e fatais pecados, especialmente o veto à circulação das idéias e fatos, substituída pelo culto ao pensamento único e a fabricação do consenso. No discurso, pluralidade é a palavra na boca de todos os barões da imprensa. Na prática, é só um biombo para uma realidade inversa. Hoje, como na sacada de Ziraldo, todos os principais rádios, jornais, revistas e TVs do país dizem exatamente o mesmo sobre instituições e temas cruciais da realidade brasileira. Precisa-se de prova? Ok, qual a diferença no tratamento da reforma agrária, por exemplo, entre Estadão, Folha de São Paulo, O Globo e Jornal do Brasil? E do MST? Onde a distinção na abordagem do Governo Lula? E de uma figura como Evo Morales? E de Hugo Chávez?
O ogro que perturba o sono
Ah, Chávez é um caso à parte. Zero Hora é um dos veículos mais obsecados na luta sem trégua contra o presidente venezuelano. Chávez faz o papel, naqueles filmes noir, do sujeito arrastado para uma ruela erma e escura -- talvez chamada Liberdade de Expressão -- onde, dominado por dois brutamontes, vai ser soqueado implacavelmente por um terceiro. Existe para ser esmurrado. Na ausência de fatos reais, chega-se a produzir matérias tolas, pescadas na internet e cozinhadas na redação, com a única finalidade de desconstituí-lo. Foi o que aconteceu dia 30/09, dedicando-lhe uma página. No seu açodamento, porém, o diário dos Sirotsky abre a guarda e conta mais a seu próprio respeito do que pretende revelar sobre sua vítima.
No quadro “Fatos e mitos”, intitula-se uma das colunas “Parece mentira, mas é verdade”, enquanto a outra é “Parece verdade, mas é mentira”. Nesta, agrupam-se os boatos que circulam pela web. Mas é a primeira, onde residem os fatos -- deve-se entender fatos surpreendentes -- que ZH prepara a arapuca onde ela própria vai cair.
Depois da frase “o que ele (Chávez) já fez”, vem o rosário de façanhas supostamente espantosas da lavra do ogro abominável que perturba o sono midiático.
ZH diz que Chávez “fechou a RCTV, a maior e mais popular rede de televisão do país, que o criticava frequentemente”. Omite que, na verdade, o bolivariano negou, com o absoluto respaldo da lei, a renovação da concessão de uma emissora, um direito de qualquer governante de qualquer nação digna deste nome. Aliás, a RCTV já deveria ter sido cassada em 2002, pelo seu apoio ao golpe contra a constituição. Primeiro, ressalta-se o argumento patrimonialista, pretendendo-se que o espectro eletromagnético -- um bem de todos -- transforme-se em propriedade de particulares. Segundo, consagra-se a inimputabilidade das concessionárias que afirmam seu direito de atentar contra a democracia e de derrubar chefes de governo. Parece mentira mas é verdade: ZH acha pitoresco que uma emissora de TV não possa – ora, bolas! -- sequer conspirar contra o Estado Democrático de Direito. E, além disso, não tenha nem mesmo o direito de ficar com o que não lhe pertence.
Outra de Chávez que não desce pela garganta de ZH, é a idéia de inserir o adjetivo “bolivariana” entre “República” e “Venezuela”. Simon Bolívar, guru de Chávez, foi um precursor da integração latino-americana. No começo do século 18, advogava a existência de nações independentes, política e economicamente. Bizarro este Bolívar, também chamado El Libertador, por seu empenho para livrar os povos do continente do jugo europeu. Há algum motivo para torcer o nariz? Parece mentira, mas é verdade: ZH nunca achou curiosa e muito menos humilhante para a cidadania brasileira a existência de cidades, escolas, ginásios, ruas, praças, avenidas e rodovias pelo Brasil afora batizadas com nomes como Garrastazu Médici, Ernesto Geisel, João Figueiredo, Costa e Silva e Castelo Branco, os cinco ditadores do regime militar. Acha natural homenagear o jugo e engraçado homenagear a libertação...
Outro projeto, outro país, outra mídia
Mas nada se compara a perplexidade de ZH diante do fato de que Chávez “atacou o latifúndio”! Uau, atacar o latifúndio. Parece mentira, logo o latifúndio, esta coisa abençoada por Deus e bonita por natureza, ma-que-belê, a razão da simpatia, do poder do algo mais e da alegria... Ninguém imaginaria uma heresia tamanha. Mas de Belzebu é possível esperar tudo. Pois foi exatamente o que fez “O Mameluco”, como o chama o Estadão, também num momento de auto-revelação involuntária.
Bueno, o mínimo que se pode dizer é que Chávez fez uma coisa muito antiga. E que não deveria surpreender a ninguém. Dois milênios atrás, o tribuno Caio Graco “atacou o latifúndio” ao mandar distribuir terras em Roma. As revoluções francesa, russa, chinesa, cubana, mexicana, entre outras menos notáveis, também chutaram a bunda dos latifundiários. Mas não apenas a esquerda “atacou o latifúndio”. No Japão ocupado, pós II Guerra Mundial, o SCAP (Supreme Commander of the Allied Powers), sob a chefia do general Douglas MacArthur, quebrou o espinhaço dos senhores rurais, impondo-lhes uma reforma agrária radical que redistribuiu 70% das terras do país! E nenhuma propriedade rural ficou com mais de um mísero hectare! Estapafúrdio, o tal MacArthur, hein? Claro que tudo foi feito como uma vacina para conter a sedução dos pobres pelo comunismo na Ásia. O horror é que a reforma, mandando às favas os proprietários absenteístas e colocando “a terra na mão de quem nela trabalha”, como manda a divisa tão familiar, deu certo e pavimentou a estrada para o Japão moderno.
Nada, porém, como a História para ajudar a compreender porque a teologia sirostskiana considera blasfêmia atacar o latifúndio. Nada, talvez, explique melhor o rumo de duas civilizações do que a destinação dada à terra no Brasil e nos Estados Unidos. Enquanto Abraham Lincoln, durante o enfrentamento com as elites escravocratas do Sul, abria o Oeste para as levas de imigrantes através do Homestead Act, de 1862, as oligarquias igualmente escravocratas de Pindorama, já em 1850, editavam a Lei de Terras. Que tinha a finalidade justamente de impedir que os despossuídos – imigrantes europeus ou futuramente os negros libertos – tivessem seu pedaço de chão. Não adiantou a pregação de José Bonifácio que verberava o atraso do latifúndio escravista e sonhava com uma nação de pequenos proprietários livres, defendendo a reforma agrária, a revogação de sesmarias e a doação de lotes para “europeus pobres, índios, mulatos e negros forros”, conforme registrou nas suas “Lembranças e Apontamentos”, de 1821. Era outro projeto de país. Mas o latifúndio venceu e hoje somos o que somos. E temos a mídia que temos. Parece mentira, mas é verdade.
2 comentários:
O latifundio venceu por enquanto !
Grande texto!
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