28 de agosto de 2009

A TRAGÉDIA ANUNCIADA E A URGÊNCIA DE UMA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO

Escreve Rodrigo Lentz:

A execução de um sem-terra durante o cumprimento de um mandado judicial evidencia que nossas piores máculas do passado ainda vivem no presente. Manifestam-se na pele dos atores estatais envolvidos numa tragédia anunciada: Judiciário, Ministério Público, Governo do Estado e Brigada Militar. O juízo minimamente razoável sobre a atuação desses nos levará à conclusão que, apesar do pretenso Estado Democrático de Direito em vigor, apenas poucos logram garantir seus direitos fundamentais às custas do sangue da maioria, contando com a conivência e atuação ativa ou omissa do Estado.

Ao deferir a reintegração de posse aos proprietários da Fazenda Southal, o magistrado de São Gabriel fundamentou sua decisão na defesa do bem jurídico da propriedade privada – que possui como cláusula pétrea o exercício de sua função social para existir. Entretanto, o fez mediante sacrifício de outro bem jurídico fundamental das famílias dos sem-terra: a terra, por relação umbilical somada à todos os outros direitos fundamentais previstos na Carta Política de 1988.

Posto isto, salta a questão: Por que o juízo não ponderou estes dois bens jurídicos? O direito à propriedade da família Southal é superior ao bem jurídico das famílias dos sem-terra? Não poderia condicionar um direito à garantia (pelo Estado) de outro, mesmo que liminarmente? Caso a leitura fosse outra, se notaria que em nome do direito à propriedade da família Southal (com razoável condição financeira) o magistrado negou o mesmo direito fundamental às famílias sem-terra (miseráveis). Daí o absurdo da decisão e a evidente escolha política de classe – não partidária – do magistrado.

Da mesma forma, ainda que se opte pela reintegração, a execução do mandado judicial escorrega na mesma lama. Novamente, o uso da força determinado pelo juízo – até as últimas consequências - para cumprir a defesa do bem jurídico da propriedade privada (que no caso em apreço é questionada) colide com outros bens jurídicos como a integridade física, moral, a resistência e, cabalmente, o maior de todos: a vida. A tragédia, às claras, era anunciada.

Outro fator é evidente. O Estado do Rio Grande do Sul foi o único do país a não aderir aos acordos de procedimento para o uso da força nas reintegrações de posse que envolvam conflitos fundiários (há décadas campo de duros embates). Uma das normas é exatamente o desuso de armas letais pelos policiais militares. Resultado: a morte de um sem-terra pela Brigada Militar. A não adesão à essas normas, mesmo cientes do grande risco do crime ocorrer, alcança à governadora e ao Comando-Geral da Brigada Militar a latente conduta de negligência e imperícia como seus cartões de visitas. Por que não aderir ao manual de procedimentos? Qual sua motivação? Como justificá-la? A resposta pode ser encontrada na pública e ferrenha discordância da governadora em relação ao MST.

Na mesma quadra, a Brigada Militar ostenta, na galeria de seus inimigos, os movimentos campesinos. Mais uma vez grita a clara incompatibilidade de uma Polícia Militar e o Estado Democrático de Direito. A forma como a polícia agiu – e continuará agindo – é digna de sua formação: militar, autoritária, que não sabe conviver democraticamente com o conflito, as disputas políticas que são a essência de um Estado Democrático. Como sustentar que uma instituição militar e de orientação ideológica autoritária irá agir respeitando as liberdades democráticas?

Estamos colocando um deficiente visual para conduzir um ônibus lotado de crianças. Mais uma vez: a tragédia era e continua sendo anunciada.

O inaceitável âmago militar da Polícia gaúcha recebe vultosidade quando comparada às Polícias de Alagoas e Sergipe - em processo de desmilitarização, ainda que apenas fática. As reintegrações de posse são cumpridas de forma pacífica, negociada. As pessoas afetadas pelo cumprimento do mandado judicial são reconhecidas pela polícia como portadoras de direitos em busca da efetivação dos mesmos e não como criminosos. O resultado foi manifesto: em apenas duas ocasiões – dentre mais de 500 – o uso da força foi colocado em prática. Sem feridos. Muito diferente da Polícia Militar Gaúcha, para quem notoriamente os sem-terra são criminosos. Esta postura só poderia ter o resultado que, hipocritamente, foi lamentado.

A mídia do Estado contribui para a construção de um imaginário coletivo que justifica a Polícia que temos. Em enquete promovida por um programa televisivo – de maior audiência no estado e de conhecida oposição ao MST– 80% dos participantes apoiou a ação da BM, ou seja, absolvem homicídios estatais em desocupações de sem-terra. São contra os valores que estão dispostos na constituição de seu próprio país.

E por fim, o Ministério Público Estadual – presente na desocupação – classificou a atuação da Brigada militar como “extremamente profissional”. Diante dos fatos e dos erros reconhecidamente ocorridos (inclusive pela própria Brigada Militar), o parecer ministerial é revoltante. Traz a indignação saltar pelas veias de qualquer jurista minimamente comprometido com os princípios republicanos e soa como deboche à dor dos familiares da vítima e do movimento.

Os argumentos expostos nos permitem ter, no mínimo, duas conclusões. A imprudência, omissão e negligência dos atores estatais – juiz, governadora e Comando da Brigada Militar - são clarividentes e confirmadas pelo seu resultado. Assim, o homicídio de um sem-terra não foi comum. Estamos diante de um crime contra o Estado Democrático de Direito. O manifesto uso da função e agentes públicos para fins privados e antidemocráticos: combater grupo político de posição ideológica radicalmente diversa mediante a violência estatal – inclusive física e letal – de forma cruel – vale lembra que várias mulheres e crianças saíram feridas por mordidas de cachorros usados na ação pela Brigada Militar.

A segunda é em resposta à primeira: a urgência da Justiça de Transição no país. Um de seus pontos é justamente a transformação das instituições estatais de matriz autoritária em democráticas. Ao perceber a conduta do poder Judiciário, do Executivo e do Ministério Público observa-se que a democracia e o reconhecimento de que todos os cidadãos são portadores de direitos e dignidade – mesmo aqueles com opiniões diferentes ou que cometem qualquer crime – continua por ser feita e distante de lograr êxito.

No caso específico de São Gabriel, não será pelo simples afastamento de um oficial e acusação ao executor do crime. Passa pela responsabilização destes agentes públicos como atores – de forma ativa ou passiva - de crimes de responsabilidade e de lesa-humanidade previstos no ordenamento jurídico brasileiro1. Além da urgente desmilitarização da polícia e na democratização da própria instituição do Judiciário.

Pelo exposto, oferece-se denúncia pública ao Ministério Público Federal e à toda comunidade internacional contra os agentes públicos envolvidos: Juiz Estadual, Promotoria de São Gabriel, Comando da Brigada Militar e governadora do Estado do Rio Grande do Sul. O Estado – embora devendo ser provocado e cobrado – não fará justiça. Mas será a luta incessante por igualdade e dignidade para todos – da qual Eltom Brum da Silva e o MST são exemplares – que dará sobrevida à própria humanidade.

Rodrigo Lentz.
www.caedunisinos.wordpress.com
www.ecosol.org
www.principioativo.blogspot.com

[1] Refere-se à Lei 1.079/50:

Art. 74. Constituem crimes de responsabilidade dos governadores dos Estados ou dos seus Secretários, quando por eles praticados, os atos definidos como crimes nesta lei.

Art. 7º São crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais:

9 - violar patentemente qualquer direito ou garantia individual constante do art. 141 e bem assim os direitos sociais assegurados no artigo 157 da Constituição;

Art. 9º São crimes de responsabilidade contra a probidade na administração:

3 - não tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição;


Arte: Hupper

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