1 de maio de 2010

Capital, trabalho e crime


A propósito da foto que ilustra o blog Diário Gauche neste 1º de maio, segue artigo de Maria Orlanda Pinassi, publicado originalmente na antiga página Agência Carta Maior em junho de 2006, cujo vínculo está indisponível atualmente.

O artigo se referia à violência no estado de São Paulo, conhecido por maio vermelho, e que retornou agora, 4 anos depois, na região do Guarujá.

O capital comete o crime. A ocasião faz o bandido

A superlotação dos presídios é a realidade a ser

agravada no mundo regido pelo capital que, em

escala crescente, precisa, para cada operação, de

uma mão-de-obra não somente desqualificada, mas

totalmente destroçada e descartável – no sentido

mais radical que se possa dar ao termo.

Maria Orlanda Pinassi


A propósito da ofensiva do PCC, que desde o último mês

de maio vem estarrecendo a “opinião pública” e

ocupando os espaços mais importantes da mídia nacional

e internacional, sugiro um ângulo menos casual para

debater um problema fundamentalmente estrutural.


Um bom ponto de partida pode estar em “Delícias do

crime” (Editora Busca Vida, 1988), do marxista alemão

Ernst Mandel (1923-1995), que considera o romance

policial o gênero que, mesmo sem querer, melhor se

aproxima da natureza mais íntima da prosaica realidade

burguesa.


“A história do romance policial é uma história social,

pois aparece entrelaçada com a própria história da

sociedade. Se formularem a pergunta: “por que a

história social deveria estar refletida na história de

um gênero literário específico?”, a resposta será:

porque a história da sociedade burguesa é também a

história da propriedade e da negação dessa propriedade

– ou, em outras palavras, o crime; porque a história

da sociedade burguesa é também a crescente e explosiva

contradição entre as necessidades ou paixões

individuais e padrões mecanicamente impostos de

conformismo social; porque a sociedade burguesa, e por

si mesma, gera o crime, tem origem no crime e conduz a

ele; ou talvez porque a sociedade burguesa seja, em

resumo, uma sociedade criminosa?”


Pois bem, para intelectuais de esquerda que, como eu,

costumam freqüentar o gênero, “Delícias do crime”

oferece argumentos que, se não anulam completamente,

ao menos ajudam a minimizar o constrangimento pelas

horas dedicadas a este tipo de “subliteratura”,

condenada por sua ligeireza pequeno-burguesa e

alienada. O livro reconta a história do romance

policial a partir de um ponto de vista materialista.

Assim, com o fito de compor uma história social do

romance policial, Mandel redime seus “pares

desviantes”, restabelecendo a correspondência

indissociável entre crime e contradição social,

refletida para as mais diversas páginas literárias, da

ficção e da não-ficção, dos últimos quatrocentos anos.


* Do pecado original à sua negação


No entanto, é Karl Marx quem puxa o fio da meada

lembrando que o conceito liberal de crime – o mesmo

que há tanto tempo fornece (e, ironicamente, oculta) o

substrato classista da pena contra os que violam a

propriedade privada – tem suas origens fincadas nos

mais repugnantes atos de usurpação e violência.


Por exemplo, quando narra as atrocidades da acumulação

primitiva, Marx destrói a passividade com a qual se

convencionou descrever a formação da classe

trabalhadora. Os fatos desmistificam o sentido

fatalista e, no mínimo, estranho de libertação dado a

um movimento vivo e muito violento que expropriou e

transformou produtores diretos numa imensa massa de

indivíduos despossuídos, lançados a mais absoluta

pobreza e à dependência exclusiva do mercado de

trabalho.


Da pilhagem inicial aos novos proprietários sobreveio

a imperativa necessidade de legitimar e, com isso,

potencializar os seus já fabulosos resultados. A

regência do capital impunha a reprodução permanente e

sempre ampliada daquele primeiro – e já concluído –

movimento de expansão e acumulação de riquezas,

impulsionada então por uma nova centralidade

fundamental: a exploração do trabalho “livre” e

assalariado que, até finais do século XIX, conviveu e

até mesmo se associou perfeitamente à exploração do

trabalho escravo nas colônias (1). Isso significa que

a reprodução do movimento necessário à acumulação é

também a reprodução da espoliação, do roubo, do logro

e, principalmente, da extração do sobretrabalho

empregando múltiplos métodos, quase todos muito

violentos. Sobre isso, aliás, é importante lembrar que

os métodos privados empregados no princípio do

processo de desenvolvimento da acumulação jamais

caíram em desuso, ao contrário, a eficiência de seus

resultados foi complementada por outros métodos,

alguns oficializados pelo Estado, muitos dos quais tão

truculentos quantos os predecessores (2).


Por isso mesmo é que as primeiras leis precisaram

converter o pecado original na mais sagrada das

virtudes na terra, abatendo-se com ira sobre os

antagonistas da “ordem” que se pretendia instaurar.

Desde então, toda concepção do direito haveria de

regular e vigiar a relação de dominação do capital

sobre o trabalho, essa sim essencial ao funcionamento

da sociedade burguesa, tentando manter, na medida do

possível, uma distância segura entre os indivíduos

pertencentes às duas esferas. Por essa razão, e não

por outras, os sem-propriedade tiveram de ser

criminalizados na história do capital, até porque a

miséria que os reveste é a mais transparente prova da

desigualdade material, a mais absoluta conseqüência do

enriquecimento sempre ilícito dos proprietários

privados (3). A criminalização, portanto, é

imprescindível diante do espectro sempre ameaçador de

uma possível manifestação da consciência de classe

alienada, sobretudo da riqueza por ela criada.


Mas, tanto quanto os métodos privados, as leis dos

séculos XVI e XVII também têm as marcas da mais feroz

brutalidade, razão pela qual eram imediatamente

identificadas como “a expressão da vontade dos

conquistadores, enunciando como eles querem governar

seus súditos”. O grande desafio dos legisladores

liberais dos séculos seguintes foi ocultar a sua

verdadeira objetividade classista, a fim de

“pacificar” as relações contraditórias, neutralizando

a sua violência potencial. O trunfo mais utilizado

para “normalizar” a situação foi impregnar o cotidiano

dos homens com uma ilusória abrangência universal dos

direitos. Com isso, os reais problemas sociais vão

deixando de ser apreendidos como produtos de uma

gigantesca usurpação primitiva e passam a ser aceitos

com inconsciente resignação. Mais do que aceitação, os

indivíduos são levados a assumir a responsabilidade

por seus “fracassos” e “sucessos” por meio de

atributos puramente subjetivos e abstratos.


A “naturalização” dessa lógica societal seria

assegurada pela constituição de múltiplas frentes: 1)

a mais eficaz delas foi obtida da ardilosa ideologia

liberal pós-revolucionária que habilmente transmitiu

por todos os poros da vida produtiva e reprodutiva dos

indivíduos, uma confortável (e falsa) percepção de que

as oportunidades – ainda que restritas ao âmbito da

política – seriam iguais para todos os cidadãos; 2) as

leis trabalhistas e as instituições correlatas

transferem para o Estado o controle das insatisfações

e reivindicações mais imediatas da classe trabalhadora

impondo, com isso, os limites legais da luta operária,

mantida sempre na esfera das práticas defensivas ou da

inquestionável realização do trabalho alienado; 3) em

tempos de “paz”, a função policialesca do Estado –

confirmando-se como uma das bases fundamentais do

sistema sócio-metabólico do capital – mantém alerta

todo o seu efetivo humano e tecnológico. Quando,

porém, nem uma, nem outra logra êxito em conter as

manifestações mais radicais e latentes da contradição

social, prontamente o aparato repressivo oficial

aciona seus mecanismos mais violentos.


Como regra, as prisões foram concebidas e, de fato,

utilizadas para abrigar o pobre “desocupado, ocioso”,

na verdade, o trabalhador – livre ou escravo –,

desempregado, faminto, insurrecto, de qualquer modo,

previamente condenado, sem apelação, e jogado na vala

comum da gentalha maltrapilha e depravada, alheia aos

ensinamentos dos céus e rebelde à lei dos homens,

enfim, a populaça que habita o mundo das classes

perigosas. Isso significa que, a partir daquela

inversão da culpa pelo pecado original, a classe

operária, sempre tratada como “caso de polícia”, vem

há séculos expiando o delito no qual foi desde o

princípio a parte vitimada.


A verdadeira história da acumulação primitiva foi

colocada no limbo para ser esquecida, favorecendo com

isso a troca do papel de meliante. Assim, com o

passado “lavado” da memória, predominou sobre o

sistema a noção de que cumpria uma heróica “missão

civilizatória”. A soberba auto-imagem do capital – e

sua dinâmica irrefreável capaz de abalar, transformar

e submeter os cantos mais remotos do planeta -, teve

ainda outros pontos de sustentação mais ou menos

definidos: 1) a sua gigantesca capacidade de liberar

forças até então inimagináveis de produção e de

criação de riquezas graças aos progressos derivados do

trabalho abstrato e da permanente revolução

tecnológica; 2) as freqüentes investiduras do centro

sobre a periferia, sempre justificadas como a

supremacia da liberdade sobre a reação e o atraso; e

3) os princípios liberais de democracia e república,

ideais que, como Deus, ninguém jamais viu, mas, acima

de tudo, ideais obstinadamente perseguidos até mesmo

por aqueles que pouco acreditam na sua efetiva – e

falaciosa – representação na sociedade de classes.


* Presente e passado: uma reconciliação pelo crime


Durante parte considerável do período de ascendência

do sistema do capital, os apologetas procuraram

destacar as positividades do seu movimento histórico,

mantendo-as relativamente afastadas das atividades

ilícitas mais flagrantes. No entanto, muito antes

dessa longa fase de ascensão do capital atingir um

estado de esgotamento irreversível – fato que ficará

evidente nos anos de 1970 –, o quadro histórico das

primeiras décadas do século passado já admitia a forte

presença de um universo dominado pelo crime

organizado, um submundo responsável pela banda podre,

mas ainda considerada “paralela” à sociedade burguesa.


Aqui remeto o leitor novamente a Mandel e com base em

suas investigações sobre o mundo do crime refletido no

romance policial do século XX se observa que nesse

mundo não havia mais lugar para a genialidade

investigativa de um indivíduo que, sozinho, desvendava

os casos mais hediondos. O declínio do detetive astuto

leva consigo o plano privilegiado do crime autoral –

tenha sido ele passional ou premeditado –, e isso

coincide com a explosão das atividades criminosas que

adotam a racionalidade do capital, mais adequada à

ampliação das oportunidades que lhes foram abertas

pela dinâmica imperialista. A reestruturação é

progressiva e tem base nos rigores da divisão social

do trabalho; nesta medida, os produtos do crime

organizado se originam do trabalho abstrato,

objetivado através de uma intrincada e cada vez mais

complexa rede de relações sociais. A grande vantagem é

a obtenção de uma produtividade muito mais eficiente e

lucrativa, além de uma conveniente invisibilidade,

pelo menos para a parte mais poderosa dos setores

envolvidos em sua estrutura hierárquica.


Porém, à medida que avançam as décadas e os fatos –

potencialmente brutais e irracionais – do século XX, o

lado do capital mantido à distância das páginas

policiais começa, por fim, a freqüentá-la,

explicitando suas próprias e profundas ramificações

com o submundo que efusivamente prometeu combater. Ao

invés de erradicá-lo foi bem mais conveniente

associar-se a ele. Coincidentemente ou não, o

interesse por essa sociedade se intensifica na razão

inversa à decadência do Estado de bem estar social

como modelo provedor de uma expansão sem (maiores)

problemas para o capital. Incapaz de controlar as

contradições cada vez mais agudas do seu sistema de

funcionamento sociometabólico, o capital atinge,

enfim, os limites dos seus defeitos mais estruturais,

fato que dá origem a uma crise de proporções jamais

vistas antes e, o que é ainda mais grave, insolventes

no interior dessa mesma (des)ordem social.


Prova disso, é que diante da imperativa necessidade de

manter a reprodução ampliada do capital e da

impotência das políticas que até então garantiram a

sua marcha incansável, o cenário vem apontando, pelo

menos desde a década de 1970, para mudanças que

parecem ativar o seu explosivo potencial de destruição

(e só destruição), uma clara ruptura com a noção

schumpteriana de que o capitalismo é um sistema que

funciona mediante a destruição produtiva. Os efeitos

mais nefastos das medidas tomadas seriam sentidos

principalmente pelos trabalhadores, progressivamente

golpeados em seus mais elementares direitos,

conquistados através de duros enfrentamentos sindicais

e políticos. A degradação se completa com o desemprego

estrutural e a precarização sem limites do trabalho,

condições necessárias ao novo padrão de acumulação

exigido.


Nesse quadro, o capital abandona até mesmo os mais

agonizantes escrúpulos – incluindo os ideológicos.

Conseqüentemente ampliam-se os espaços

irreversivelmente ocupados pelas atividades tingidas

pelo crime. A prova disso está no inegável poder

econômico e político que hoje representa o tráfico de

drogas e de armas – o lado mais obscuro e eficiente do

império constituído pelo complexo industrial militar

–, no interior da “coisa pública” e dos negócios

privados ditos legais ou de fachada.


A cena, enfim, mostra uma situação extremamente

problemática, na qual “(...) o crime organizado, em

vez de ser periférico à sociedade burguesa, emana

crescentemente das mesmas forças propulsoras

sócio-econômicas que governam a acumulação de capital

em sua totalidade: propriedade privada, competição e

produção generalizada de bens (economia monetária

generalizada). [...] Porém, um mundo de ricos é também

um mundo de gângsteres, especialmente porque os

principais gângsteres se tornaram cada vez mais ricos

em termos relativos e são com certeza qualitativamente

mais ricos do que o policial mais rico ou a massa

esmagadora de políticos. (...) O problema econômico

chave para o crime organizado era encontrar saídas

legítimas para o capital ilegalmente acumulado. Sob o

capitalismo tardio, isso é apenas um reflexo

específico – talvez paradoxal e até grotesco – de um

problema mais geral: o encontro de áreas de

investimentos adequados para massas de capital

excedente. Entretanto, os dois fenômenos não se

encaixam simplesmente, mas na verdade tendem a fluir

um dentro do outro, se interpenetrando. O dinheiro

ilegal é “lavado” através de depósitos bancários

localizados – geralmente, embora não unicamente – em

áreas isentas de impostos. Porém o equivalente legal

do dinheiro “quente” – i. é, capital excedente – tende

da mesma forma a ser depositado nos mesmos bancos, nas

mesmas áreas isentas de impostos. O dinheiro sujo e o

limpo se confundem nas folhas de balancetes, como

também na busca da mais-valia, através de qualquer

meio possível” (4).


* A hierarquia classista e trágica do crime


Aqui chego ao ponto que me fez refletir sobre a

essencialidade do crime para a sociedade burguesa e a

perspectiva de classe tão fielmente reproduzida em sua

hierarquia. Sim, porque é no interior de toda essa

discussão que se deve tratar a realidade da explosiva

população carcerária que, apesar de confinada, vem

apavorando com as notícias sobre as rebeliões que

organiza e as ações que efetivamente lidera nas ruas.

Essa perspectiva, portanto, é muito diferente do senso

comum que analisa o problema a partir dele próprio,

como se a sua existência fosse algo em si ou, quando

muito, um problema de má gerência do Estado, reflexo

da corrupção que emana da representação política (no

Brasil e mundo), um problema de educação, enfim.


Á essa altura da discussão realizada, uma questão

fundamental é saber: quem são os indivíduos amotinados

e organizados em torno do PCC? São bandidos? Quanto a

isso parece não haver muita dúvida. Todos eles, de

algum modo, violaram, muitas vezes violentamente,

regras essenciais e necessárias à sociabilidade

humana, mesmo quando submetidas à lógica do capital.

Aqueles indivíduos, amontoados em celas como animais

no abatedouro, sujeitos às piores humilhações e

violência física, um dia roubaram, traficaram,

mataram, realizaram, em muitos dos casos, o trabalho

sujo reservado à “escória” de uma estrutura social,

seja ela legal ou ilegal.


Assim, tanto quanto Sherlock ou Hercule Poirot o

fariam, eu pergunto: qual o motivo do crime cometido

por eles? Pois bem, aqui reside toda a diferença entre

os bandidos-que-vão-para-a-cadeia e os

bandidos-que-não-vão-para-a-cadeia, entre os bandidos

visíveis e os bandidos invisíveis, estes em geral

assentados nos setores mais importantes, e até mesmo

insuspeitos, da sociedade capitalista (5). Em

princípio, portanto, parece que para aqueles que

não-vão-para-a-cadeia, o crime é a oportunidade de

acumular e fortalecer ainda mais a condição de burguês

a fim de conquistar todos os benefícios materiais e

imateriais que correspondem a esse status quo, cujo

pré-requisito é a propriedade privada,

independentemente dos critérios de moral e de

princípios éticos, hipocritamente constituídos para a

sociedade de classes. Para os que vão-para-a-cadeia, o

trabalho desenvolvido no interior da atividade

criminosa constitui um meio de reproduzir as condições

de sua vida de bandidos que, conscientemente,

vão-sempre-voltar-para-a-cadeia.


O bandido visível nasce em bairro de pobres, é

subnutrido, aplaca a fome com cola, com crack, não

estuda, apanha e é submetido a sevícias em casa, na

rua, na Febem, mais tarde, nas delegacias de polícia.

Aprende a empunhar a arma desde cedo, único meio de

afirmação da sua existência e da sua reduzida

auto-estima. A violência sempre foi a mediação mais

familiar que o liga à vida e no seu mundo, tão óbvio

quanto manejar uma arma, não há lugar para a fantasia,

para o glamour, nem para o romance; toda perspectiva é

imediata, sem rodeios, inclusive a necessidade

premente de recorrer ao crime.


Mas isso está muito longe de ser uma espécie útil de

darwinismo social, como nos faz supor a imprensa que

trata de modo tão leviano a questão. Paira, então, a

dúvida: antes de serem simplesmente os bandidos que

realizam o trabalho sujo do mundo em que vivemos, de

onde eles vêm? Evidente que sua árvore genealógica não

pactua consangüinidade com as elites. Como regra, o

passado é rude e proletário, condição progressivamente

negada pelo capital legal em sua fase de decadência

histórica. Assim, durante a crise estrutural o capital

os expulsa pela porta da frente para readmiti-los pela

porta dos fundos, sob as piores e mais precarizadas

condições possíveis. Para eles, inexistem leis a

regulamentar limite de idade, jornada de trabalho,

insalubridade. A situação, enfim, remete aos piores

dias vividos pela classe trabalhadora nos primórdios

da revolução industrial. E sobre isso, vale ainda

pensar nas campanhas que visam coibir o trabalho

infantil, enquanto a própria sociedade condena os

“aviõezinhos” do tráfico.


Esses homens e mulheres inexistem para a sociedade, a

não ser quando saem dos morros, favelas, presídios

para ameaçá-la. É nestas ocasiões que os “pacatos

cidadãos de bem” despertam sua ira para ressuscitar a

pena de morte, o discurso da autoridade, da repressão

(6).


Para concluir, arrisco ainda algumas palavras. A

organização do PCC, a partir dos presídios, confere

autenticidade às suas reivindicações enquanto

organização de presidiários. Sua expectativa não é

revolucionária, não visa romper as hierarquias, seu

inimigo está na polícia, seu algoz imediato. Não há

plano de ruptura com a estrutura mais ampla do crime

organizado do qual deriva sua própria condenação;

antes, suas ações parecem querer atenção para as

condições do cárcere numa tentativa de impor regras e,

de algum modo, minimizar a barbárie do seu cotidiano.


Sua capacidade de mobilização, bem como o

estabelecimento de regras sobre aquilo que eles mesmos

reivindicam, se contrapõe a um Estado absolutamente

incompetente e manietado pelo compromisso indissolúvel

que estabeleceu com a lógica que oferece impunidade e

privilégios aos bandidos graúdos. Ao que tudo indica,

os integrantes do PCC fazem um excelente uso do seu

peculiar tempo livre no confinamento, caso contrário

suas ações não seriam tão bem articuladas dentro e

fora dos presídios.


Por tudo isso, fica ainda mais flagrante a inutilidade

das pesquisas científicas “especializadas” em

violência, porque o imenso volume de dados que produz

não costuma ter lastro histórico e porque seu objetivo

é prover as instituições governamentais e

não-governamentais de “informações” para políticas que

nunca chegam a ser implementadas. Enquanto isso, o

crime mais amplo e de resultados infinitamente mais

trágicos para a humanidade permanece nas sombras

projetadas pelo cinismo dos seus apologetas.


A superlotação dos presídios é a realidade a ser

agravada no mundo regido pelo capital que, em escala

crescente, precisa, para cada operação, de uma

mão-de-obra não somente desqualificada, mas totalmente

destroçada e descartável – no sentido mais radical que

se possa dar ao termo. Mas, se quisermos de fato um

futuro qualitativamente diferente desse em que

vivemos, não podemos ignorar a existência desse mundo

esquecido, que foge à regra do que sempre pensamos e

que desafia a tenacidade da nossa convicção

socialista.


* Notas


1) Ver a respeito “A jornada de trabalho”. In. Karl

Marx. O capital, capítulo VIII, seção III, tomo I. São

Paulo, Nova Cultural, 1988, p. 181-2.


2) “O progresso do século XVIII consiste em a própria

lei se tornar agora veículo do roubo das terras do

povo, embora os grandes arrendatários empreguem

paralelamente também seus pequenos e independentes

métodos privados”. (Karl Marx. A assim chamada

acumulação primitiva. In. O capital, capítulo XXIV,

seção VII, tomo II. São Paulo, Nova Cultural, 1988, p.

259).


3) É absolutamente verdadeira a frase de Proudhon:

toda propriedade é um roubo.


4) Mandel, ibidem, p. 180-1.


5) Só para citar alguns, eles podem estar nas grandes

e fictícias corporações como Enron, podem estar

praticando o punguismo nos conglomerados financeiros,

os lobbies cada vez mais purulentos e desastrados que

caracterizam as ações de representatividade em todas

as esferas políticas, e até realizando pequenos golpes

contra o infeliz que “optou” por pautar sua miserável

vida pelas regras que definem tanto sua “devoção

religiosa” como aquelas que regem os “direitos do

cidadão”.


6) A mídia irresponsável que apavora a população é a

mesma que adoraria lançar uma revista cuja capa

estamparia Marcola e Hebe Camargo na Ilha de Caras.


* Maria Orlanda Pinassi é professora do Departamento

de Sociologia da Unesp de Araraquara, membro de comitê

de redação da revista Margem Esquerda e autora do

livro "Três devotos, uma fé, nenhum milagre" (Ed.

Unesp).

Um comentário:

Alberto Bilac disse...

Caros do blog,

Leiam o último capítulo da série: A Idade das Trevas. No ar e na rede: O Supremo Sonho Tucano: Transformar o Brasil num Imenso Paraguai!