A propósito da foto que ilustra o blog Diário Gauche neste 1º de maio, segue artigo de Maria Orlanda Pinassi, publicado originalmente na antiga página Agência Carta Maior em junho de 2006, cujo vínculo está indisponível atualmente.
O artigo se referia à violência no estado de São Paulo, conhecido por maio vermelho, e que retornou agora, 4 anos depois, na região do Guarujá.
O artigo se referia à violência no estado de São Paulo, conhecido por maio vermelho, e que retornou agora, 4 anos depois, na região do Guarujá.
O capital comete o crime. A ocasião faz o bandido
A superlotação dos presídios é a realidade a ser
agravada no mundo regido pelo capital que, em
escala crescente, precisa, para cada operação, de
uma mão-de-obra não somente desqualificada, mas
totalmente destroçada e descartável – no sentido
mais radical que se possa dar ao termo.
Maria Orlanda Pinassi
A propósito da ofensiva do PCC, que desde o último mês
de maio vem estarrecendo a “opinião pública” e
ocupando os espaços mais importantes da mídia nacional
e internacional, sugiro um ângulo menos casual para
debater um problema fundamentalmente estrutural.
Um bom ponto de partida pode estar em “Delícias do
crime” (Editora Busca Vida, 1988), do marxista alemão
Ernst Mandel (1923-1995), que considera o romance
policial o gênero que, mesmo sem querer, melhor se
aproxima da natureza mais íntima da prosaica realidade
burguesa.
“A história do romance policial é uma história social,
pois aparece entrelaçada com a própria história da
sociedade. Se formularem a pergunta: “por que a
história social deveria estar refletida na história de
um gênero literário específico?”, a resposta será:
porque a história da sociedade burguesa é também a
história da propriedade e da negação dessa propriedade
– ou, em outras palavras, o crime; porque a história
da sociedade burguesa é também a crescente e explosiva
contradição entre as necessidades ou paixões
individuais e padrões mecanicamente impostos de
conformismo social; porque a sociedade burguesa, e por
si mesma, gera o crime, tem origem no crime e conduz a
ele; ou talvez porque a sociedade burguesa seja, em
resumo, uma sociedade criminosa?”
Pois bem, para intelectuais de esquerda que, como eu,
costumam freqüentar o gênero, “Delícias do crime”
oferece argumentos que, se não anulam completamente,
ao menos ajudam a minimizar o constrangimento pelas
horas dedicadas a este tipo de “subliteratura”,
condenada por sua ligeireza pequeno-burguesa e
alienada. O livro reconta a história do romance
policial a partir de um ponto de vista materialista.
Assim, com o fito de compor uma história social do
romance policial, Mandel redime seus “pares
desviantes”, restabelecendo a correspondência
indissociável entre crime e contradição social,
refletida para as mais diversas páginas literárias, da
ficção e da não-ficção, dos últimos quatrocentos anos.
* Do pecado original à sua negação
No entanto, é Karl Marx quem puxa o fio da meada
lembrando que o conceito liberal de crime – o mesmo
que há tanto tempo fornece (e, ironicamente, oculta) o
substrato classista da pena contra os que violam a
propriedade privada – tem suas origens fincadas nos
mais repugnantes atos de usurpação e violência.
Por exemplo, quando narra as atrocidades da acumulação
primitiva, Marx destrói a passividade com a qual se
convencionou descrever a formação da classe
trabalhadora. Os fatos desmistificam o sentido
fatalista e, no mínimo, estranho de libertação dado a
um movimento vivo e muito violento que expropriou e
transformou produtores diretos numa imensa massa de
indivíduos despossuídos, lançados a mais absoluta
pobreza e à dependência exclusiva do mercado de
trabalho.
Da pilhagem inicial aos novos proprietários sobreveio
a imperativa necessidade de legitimar e, com isso,
potencializar os seus já fabulosos resultados. A
regência do capital impunha a reprodução permanente e
sempre ampliada daquele primeiro – e já concluído –
movimento de expansão e acumulação de riquezas,
impulsionada então por uma nova centralidade
fundamental: a exploração do trabalho “livre” e
assalariado que, até finais do século XIX, conviveu e
até mesmo se associou perfeitamente à exploração do
trabalho escravo nas colônias (1). Isso significa que
a reprodução do movimento necessário à acumulação é
também a reprodução da espoliação, do roubo, do logro
e, principalmente, da extração do sobretrabalho
empregando múltiplos métodos, quase todos muito
violentos. Sobre isso, aliás, é importante lembrar que
os métodos privados empregados no princípio do
processo de desenvolvimento da acumulação jamais
caíram em desuso, ao contrário, a eficiência de seus
resultados foi complementada por outros métodos,
alguns oficializados pelo Estado, muitos dos quais tão
truculentos quantos os predecessores (2).
Por isso mesmo é que as primeiras leis precisaram
converter o pecado original na mais sagrada das
virtudes na terra, abatendo-se com ira sobre os
antagonistas da “ordem” que se pretendia instaurar.
Desde então, toda concepção do direito haveria de
regular e vigiar a relação de dominação do capital
sobre o trabalho, essa sim essencial ao funcionamento
da sociedade burguesa, tentando manter, na medida do
possível, uma distância segura entre os indivíduos
pertencentes às duas esferas. Por essa razão, e não
por outras, os sem-propriedade tiveram de ser
criminalizados na história do capital, até porque a
miséria que os reveste é a mais transparente prova da
desigualdade material, a mais absoluta conseqüência do
enriquecimento sempre ilícito dos proprietários
privados (3). A criminalização, portanto, é
imprescindível diante do espectro sempre ameaçador de
uma possível manifestação da consciência de classe
alienada, sobretudo da riqueza por ela criada.
Mas, tanto quanto os métodos privados, as leis dos
séculos XVI e XVII também têm as marcas da mais feroz
brutalidade, razão pela qual eram imediatamente
identificadas como “a expressão da vontade dos
conquistadores, enunciando como eles querem governar
seus súditos”. O grande desafio dos legisladores
liberais dos séculos seguintes foi ocultar a sua
verdadeira objetividade classista, a fim de
“pacificar” as relações contraditórias, neutralizando
a sua violência potencial. O trunfo mais utilizado
para “normalizar” a situação foi impregnar o cotidiano
dos homens com uma ilusória abrangência universal dos
direitos. Com isso, os reais problemas sociais vão
deixando de ser apreendidos como produtos de uma
gigantesca usurpação primitiva e passam a ser aceitos
com inconsciente resignação. Mais do que aceitação, os
indivíduos são levados a assumir a responsabilidade
por seus “fracassos” e “sucessos” por meio de
atributos puramente subjetivos e abstratos.
A “naturalização” dessa lógica societal seria
assegurada pela constituição de múltiplas frentes: 1)
a mais eficaz delas foi obtida da ardilosa ideologia
liberal pós-revolucionária que habilmente transmitiu
por todos os poros da vida produtiva e reprodutiva dos
indivíduos, uma confortável (e falsa) percepção de que
as oportunidades – ainda que restritas ao âmbito da
política – seriam iguais para todos os cidadãos; 2) as
leis trabalhistas e as instituições correlatas
transferem para o Estado o controle das insatisfações
e reivindicações mais imediatas da classe trabalhadora
impondo, com isso, os limites legais da luta operária,
mantida sempre na esfera das práticas defensivas ou da
inquestionável realização do trabalho alienado; 3) em
tempos de “paz”, a função policialesca do Estado –
confirmando-se como uma das bases fundamentais do
sistema sócio-metabólico do capital – mantém alerta
todo o seu efetivo humano e tecnológico. Quando,
porém, nem uma, nem outra logra êxito em conter as
manifestações mais radicais e latentes da contradição
social, prontamente o aparato repressivo oficial
aciona seus mecanismos mais violentos.
Como regra, as prisões foram concebidas e, de fato,
utilizadas para abrigar o pobre “desocupado, ocioso”,
na verdade, o trabalhador – livre ou escravo –,
desempregado, faminto, insurrecto, de qualquer modo,
previamente condenado, sem apelação, e jogado na vala
comum da gentalha maltrapilha e depravada, alheia aos
ensinamentos dos céus e rebelde à lei dos homens,
enfim, a populaça que habita o mundo das classes
perigosas. Isso significa que, a partir daquela
inversão da culpa pelo pecado original, a classe
operária, sempre tratada como “caso de polícia”, vem
há séculos expiando o delito no qual foi desde o
princípio a parte vitimada.
A verdadeira história da acumulação primitiva foi
colocada no limbo para ser esquecida, favorecendo com
isso a troca do papel de meliante. Assim, com o
passado “lavado” da memória, predominou sobre o
sistema a noção de que cumpria uma heróica “missão
civilizatória”. A soberba auto-imagem do capital – e
sua dinâmica irrefreável capaz de abalar, transformar
e submeter os cantos mais remotos do planeta -, teve
ainda outros pontos de sustentação mais ou menos
definidos: 1) a sua gigantesca capacidade de liberar
forças até então inimagináveis de produção e de
criação de riquezas graças aos progressos derivados do
trabalho abstrato e da permanente revolução
tecnológica; 2) as freqüentes investiduras do centro
sobre a periferia, sempre justificadas como a
supremacia da liberdade sobre a reação e o atraso; e
3) os princípios liberais de democracia e república,
ideais que, como Deus, ninguém jamais viu, mas, acima
de tudo, ideais obstinadamente perseguidos até mesmo
por aqueles que pouco acreditam na sua efetiva – e
falaciosa – representação na sociedade de classes.
* Presente e passado: uma reconciliação pelo crime
Durante parte considerável do período de ascendência
do sistema do capital, os apologetas procuraram
destacar as positividades do seu movimento histórico,
mantendo-as relativamente afastadas das atividades
ilícitas mais flagrantes. No entanto, muito antes
dessa longa fase de ascensão do capital atingir um
estado de esgotamento irreversível – fato que ficará
evidente nos anos de 1970 –, o quadro histórico das
primeiras décadas do século passado já admitia a forte
presença de um universo dominado pelo crime
organizado, um submundo responsável pela banda podre,
mas ainda considerada “paralela” à sociedade burguesa.
Aqui remeto o leitor novamente a Mandel e com base em
suas investigações sobre o mundo do crime refletido no
romance policial do século XX se observa que nesse
mundo não havia mais lugar para a genialidade
investigativa de um indivíduo que, sozinho, desvendava
os casos mais hediondos. O declínio do detetive astuto
leva consigo o plano privilegiado do crime autoral –
tenha sido ele passional ou premeditado –, e isso
coincide com a explosão das atividades criminosas que
adotam a racionalidade do capital, mais adequada à
ampliação das oportunidades que lhes foram abertas
pela dinâmica imperialista. A reestruturação é
progressiva e tem base nos rigores da divisão social
do trabalho; nesta medida, os produtos do crime
organizado se originam do trabalho abstrato,
objetivado através de uma intrincada e cada vez mais
complexa rede de relações sociais. A grande vantagem é
a obtenção de uma produtividade muito mais eficiente e
lucrativa, além de uma conveniente invisibilidade,
pelo menos para a parte mais poderosa dos setores
envolvidos em sua estrutura hierárquica.
Porém, à medida que avançam as décadas e os fatos –
potencialmente brutais e irracionais – do século XX, o
lado do capital mantido à distância das páginas
policiais começa, por fim, a freqüentá-la,
explicitando suas próprias e profundas ramificações
com o submundo que efusivamente prometeu combater. Ao
invés de erradicá-lo foi bem mais conveniente
associar-se a ele. Coincidentemente ou não, o
interesse por essa sociedade se intensifica na razão
inversa à decadência do Estado de bem estar social
como modelo provedor de uma expansão sem (maiores)
problemas para o capital. Incapaz de controlar as
contradições cada vez mais agudas do seu sistema de
funcionamento sociometabólico, o capital atinge,
enfim, os limites dos seus defeitos mais estruturais,
fato que dá origem a uma crise de proporções jamais
vistas antes e, o que é ainda mais grave, insolventes
no interior dessa mesma (des)ordem social.
Prova disso, é que diante da imperativa necessidade de
manter a reprodução ampliada do capital e da
impotência das políticas que até então garantiram a
sua marcha incansável, o cenário vem apontando, pelo
menos desde a década de 1970, para mudanças que
parecem ativar o seu explosivo potencial de destruição
(e só destruição), uma clara ruptura com a noção
schumpteriana de que o capitalismo é um sistema que
funciona mediante a destruição produtiva. Os efeitos
mais nefastos das medidas tomadas seriam sentidos
principalmente pelos trabalhadores, progressivamente
golpeados em seus mais elementares direitos,
conquistados através de duros enfrentamentos sindicais
e políticos. A degradação se completa com o desemprego
estrutural e a precarização sem limites do trabalho,
condições necessárias ao novo padrão de acumulação
exigido.
Nesse quadro, o capital abandona até mesmo os mais
agonizantes escrúpulos – incluindo os ideológicos.
Conseqüentemente ampliam-se os espaços
irreversivelmente ocupados pelas atividades tingidas
pelo crime. A prova disso está no inegável poder
econômico e político que hoje representa o tráfico de
drogas e de armas – o lado mais obscuro e eficiente do
império constituído pelo complexo industrial militar
–, no interior da “coisa pública” e dos negócios
privados ditos legais ou de fachada.
A cena, enfim, mostra uma situação extremamente
problemática, na qual “(...) o crime organizado, em
vez de ser periférico à sociedade burguesa, emana
crescentemente das mesmas forças propulsoras
sócio-econômicas que governam a acumulação de capital
em sua totalidade: propriedade privada, competição e
produção generalizada de bens (economia monetária
generalizada). [...] Porém, um mundo de ricos é também
um mundo de gângsteres, especialmente porque os
principais gângsteres se tornaram cada vez mais ricos
em termos relativos e são com certeza qualitativamente
mais ricos do que o policial mais rico ou a massa
esmagadora de políticos. (...) O problema econômico
chave para o crime organizado era encontrar saídas
legítimas para o capital ilegalmente acumulado. Sob o
capitalismo tardio, isso é apenas um reflexo
específico – talvez paradoxal e até grotesco – de um
problema mais geral: o encontro de áreas de
investimentos adequados para massas de capital
excedente. Entretanto, os dois fenômenos não se
encaixam simplesmente, mas na verdade tendem a fluir
um dentro do outro, se interpenetrando. O dinheiro
ilegal é “lavado” através de depósitos bancários
localizados – geralmente, embora não unicamente – em
áreas isentas de impostos. Porém o equivalente legal
do dinheiro “quente” – i. é, capital excedente – tende
da mesma forma a ser depositado nos mesmos bancos, nas
mesmas áreas isentas de impostos. O dinheiro sujo e o
limpo se confundem nas folhas de balancetes, como
também na busca da mais-valia, através de qualquer
meio possível” (4).
* A hierarquia classista e trágica do crime
Aqui chego ao ponto que me fez refletir sobre a
essencialidade do crime para a sociedade burguesa e a
perspectiva de classe tão fielmente reproduzida em sua
hierarquia. Sim, porque é no interior de toda essa
discussão que se deve tratar a realidade da explosiva
população carcerária que, apesar de confinada, vem
apavorando com as notícias sobre as rebeliões que
organiza e as ações que efetivamente lidera nas ruas.
Essa perspectiva, portanto, é muito diferente do senso
comum que analisa o problema a partir dele próprio,
como se a sua existência fosse algo em si ou, quando
muito, um problema de má gerência do Estado, reflexo
da corrupção que emana da representação política (no
Brasil e mundo), um problema de educação, enfim.
Á essa altura da discussão realizada, uma questão
fundamental é saber: quem são os indivíduos amotinados
e organizados em torno do PCC? São bandidos? Quanto a
isso parece não haver muita dúvida. Todos eles, de
algum modo, violaram, muitas vezes violentamente,
regras essenciais e necessárias à sociabilidade
humana, mesmo quando submetidas à lógica do capital.
Aqueles indivíduos, amontoados em celas como animais
no abatedouro, sujeitos às piores humilhações e
violência física, um dia roubaram, traficaram,
mataram, realizaram, em muitos dos casos, o trabalho
sujo reservado à “escória” de uma estrutura social,
seja ela legal ou ilegal.
Assim, tanto quanto Sherlock ou Hercule Poirot o
fariam, eu pergunto: qual o motivo do crime cometido
por eles? Pois bem, aqui reside toda a diferença entre
os bandidos-que-vão-para-a-cadeia e os
bandidos-que-não-vão-para-a-cadeia, entre os bandidos
visíveis e os bandidos invisíveis, estes em geral
assentados nos setores mais importantes, e até mesmo
insuspeitos, da sociedade capitalista (5). Em
princípio, portanto, parece que para aqueles que
não-vão-para-a-cadeia, o crime é a oportunidade de
acumular e fortalecer ainda mais a condição de burguês
a fim de conquistar todos os benefícios materiais e
imateriais que correspondem a esse status quo, cujo
pré-requisito é a propriedade privada,
independentemente dos critérios de moral e de
princípios éticos, hipocritamente constituídos para a
sociedade de classes. Para os que vão-para-a-cadeia, o
trabalho desenvolvido no interior da atividade
criminosa constitui um meio de reproduzir as condições
de sua vida de bandidos que, conscientemente,
vão-sempre-voltar-para-a-cadeia.
O bandido visível nasce em bairro de pobres, é
subnutrido, aplaca a fome com cola, com crack, não
estuda, apanha e é submetido a sevícias em casa, na
rua, na Febem, mais tarde, nas delegacias de polícia.
Aprende a empunhar a arma desde cedo, único meio de
afirmação da sua existência e da sua reduzida
auto-estima. A violência sempre foi a mediação mais
familiar que o liga à vida e no seu mundo, tão óbvio
quanto manejar uma arma, não há lugar para a fantasia,
para o glamour, nem para o romance; toda perspectiva é
imediata, sem rodeios, inclusive a necessidade
premente de recorrer ao crime.
Mas isso está muito longe de ser uma espécie útil de
darwinismo social, como nos faz supor a imprensa que
trata de modo tão leviano a questão. Paira, então, a
dúvida: antes de serem simplesmente os bandidos que
realizam o trabalho sujo do mundo em que vivemos, de
onde eles vêm? Evidente que sua árvore genealógica não
pactua consangüinidade com as elites. Como regra, o
passado é rude e proletário, condição progressivamente
negada pelo capital legal em sua fase de decadência
histórica. Assim, durante a crise estrutural o capital
os expulsa pela porta da frente para readmiti-los pela
porta dos fundos, sob as piores e mais precarizadas
condições possíveis. Para eles, inexistem leis a
regulamentar limite de idade, jornada de trabalho,
insalubridade. A situação, enfim, remete aos piores
dias vividos pela classe trabalhadora nos primórdios
da revolução industrial. E sobre isso, vale ainda
pensar nas campanhas que visam coibir o trabalho
infantil, enquanto a própria sociedade condena os
“aviõezinhos” do tráfico.
Esses homens e mulheres inexistem para a sociedade, a
não ser quando saem dos morros, favelas, presídios
para ameaçá-la. É nestas ocasiões que os “pacatos
cidadãos de bem” despertam sua ira para ressuscitar a
pena de morte, o discurso da autoridade, da repressão
(6).
Para concluir, arrisco ainda algumas palavras. A
organização do PCC, a partir dos presídios, confere
autenticidade às suas reivindicações enquanto
organização de presidiários. Sua expectativa não é
revolucionária, não visa romper as hierarquias, seu
inimigo está na polícia, seu algoz imediato. Não há
plano de ruptura com a estrutura mais ampla do crime
organizado do qual deriva sua própria condenação;
antes, suas ações parecem querer atenção para as
condições do cárcere numa tentativa de impor regras e,
de algum modo, minimizar a barbárie do seu cotidiano.
Sua capacidade de mobilização, bem como o
estabelecimento de regras sobre aquilo que eles mesmos
reivindicam, se contrapõe a um Estado absolutamente
incompetente e manietado pelo compromisso indissolúvel
que estabeleceu com a lógica que oferece impunidade e
privilégios aos bandidos graúdos. Ao que tudo indica,
os integrantes do PCC fazem um excelente uso do seu
peculiar tempo livre no confinamento, caso contrário
suas ações não seriam tão bem articuladas dentro e
fora dos presídios.
Por tudo isso, fica ainda mais flagrante a inutilidade
das pesquisas científicas “especializadas” em
violência, porque o imenso volume de dados que produz
não costuma ter lastro histórico e porque seu objetivo
é prover as instituições governamentais e
não-governamentais de “informações” para políticas que
nunca chegam a ser implementadas. Enquanto isso, o
crime mais amplo e de resultados infinitamente mais
trágicos para a humanidade permanece nas sombras
projetadas pelo cinismo dos seus apologetas.
A superlotação dos presídios é a realidade a ser
agravada no mundo regido pelo capital que, em escala
crescente, precisa, para cada operação, de uma
mão-de-obra não somente desqualificada, mas totalmente
destroçada e descartável – no sentido mais radical que
se possa dar ao termo. Mas, se quisermos de fato um
futuro qualitativamente diferente desse em que
vivemos, não podemos ignorar a existência desse mundo
esquecido, que foge à regra do que sempre pensamos e
que desafia a tenacidade da nossa convicção
socialista.
* Notas
1) Ver a respeito “A jornada de trabalho”. In. Karl
Marx. O capital, capítulo VIII, seção III, tomo I. São
Paulo, Nova Cultural, 1988, p. 181-2.
2) “O progresso do século XVIII consiste em a própria
lei se tornar agora veículo do roubo das terras do
povo, embora os grandes arrendatários empreguem
paralelamente também seus pequenos e independentes
métodos privados”. (Karl Marx. A assim chamada
acumulação primitiva. In. O capital, capítulo XXIV,
seção VII, tomo II. São Paulo, Nova Cultural, 1988, p.
259).
3) É absolutamente verdadeira a frase de Proudhon:
toda propriedade é um roubo.
4) Mandel, ibidem, p. 180-1.
5) Só para citar alguns, eles podem estar nas grandes
e fictícias corporações como Enron, podem estar
praticando o punguismo nos conglomerados financeiros,
os lobbies cada vez mais purulentos e desastrados que
caracterizam as ações de representatividade em todas
as esferas políticas, e até realizando pequenos golpes
contra o infeliz que “optou” por pautar sua miserável
vida pelas regras que definem tanto sua “devoção
religiosa” como aquelas que regem os “direitos do
cidadão”.
6) A mídia irresponsável que apavora a população é a
mesma que adoraria lançar uma revista cuja capa
estamparia Marcola e Hebe Camargo na Ilha de Caras.
* Maria Orlanda Pinassi é professora do Departamento
de Sociologia da Unesp de Araraquara, membro de comitê
de redação da revista Margem Esquerda e autora do
livro "Três devotos, uma fé, nenhum milagre" (Ed.
Unesp).
Um comentário:
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