10 de outubro de 2005

Referendo "non sense"

Há dias, estamos acompanhando o debate sobre o uso de armas de fogo e compilando as mensagens que chegam à lista com esse tema. A maioria das mensagens aborda o tema do ponto de vista da redução ou não da violência, a partir da redução do número de armas em circulação, se é lícito o uso de armas, se o cidadão tem esse direito, etc. De tudo o que lemos, o que mais nos chamou a atenção foram as intervenções do Hals e da Lila, que abordaram o tema enfocando aquilo que consideramos a questão fulcral desse debate e da qual a maioria das mensagens passaram ao largo. Este plebiscito significa, para nós, que simplesmente o estado joga, para cima da população, a responsabilidade de resolver o problema da violência.

Demagogicamente e exaltando o princípio da manifestação democrática, o governo conclama a todos a fazerem uma "escolha" entre continuar a comercialização livre das armas ou o desarmamento unilateral dos cidadãos, sem uma contrapartida objetiva de medidas que o estado tomará em relação àqueles que não acatarem a lei, no caso da proibição da venda de armas. Falamos em contrapartida, porque, para nós, é mais do que óbvio que uma parcela da população não se intimidará com tal decisão e continuará a fazer o uso de armas como sempre fez. Como também é obvio que a legislação está muito aquém das necessidades que se apresentam nessa questão. De acordo com a lei já existente, a pena para quem porta uma arma de fogo sem licença é de, no máximo, 6 anos de detenção. Para nós, é uma pena insignificante, diante da mobilização que se está fazendo e uma contrapartida pífia à gravidade do problema. O que acontecerá, por exemplo, com alguém que for flagrado portando uma arma de uso militar, como no caso dos traficantes? E com contrabandistas e facilitadores do comércio ilegal de armas, como o Dep. Romeu Tuma? O que temos a fazer é endurecer a legislação existente e garantir, com isso, o controle máximo do estado sobre o comércio de armas.

O estado brasileiro, incapaz de se fazer representar como tal, enfraquecido pelas sucessivas investidas do desmonte neoliberal, enfrenta uma crescente onda de violência que tem sua origem justamente nesse enfraquecimento que, por sua vez, gera a incapacidade de prover as mínimas condições de vida para uma parte significativa da população. Sem margem de manobra, dentro do projeto político que adotou ou foi forçado a adotar, não põe em prática as políticas públicas de longo alcance que resolveriam, em grande parte, o problema da violência. Ao contrário, tergiversa e busca uma solução através de medidas paliativas, como esse estatuto do desarmamento.

Se a intenção do governo é resolver o problema pelo lado mais fácil, que é o de desarmar a população, não é preciso nenhum talento especial para vaticinar o fracasso de tal projeto. Num primeiro momento, os indicadores de violência provocada por armas de fogo poderá cair sob o impacto inicial das medidas. É certa a diminuição das mortes em brigas de bêbados, acidentes com crianças manuseando armas e desavenças no trânsito. Mas em seguida, o número de mortes voltará a crescer. Sobre isso, diz Denise Frossard:

"No caso da proibição do comércio de armas, a falsa sensação produzirá, no entanto, um efeito danoso: retirará do Estado a possibilidade de controle (ainda que frágil, como agora) e dificultará ainda mais a investigação de crimes praticados com esse recurso. Proibida a comercialização, o Estado não terá mais instrumentos para o controle da circulação de armas.Como a sensação de insegurança persistirá, porque as verdadeiras causas da criminalidade (corrupção e impunidade) não são resolvidas em razão das deficiências do Estado, o mercado inteiro de armas de fogo irá para a clandestinidade".

A sensação de insegurança, que não será só sensação, mas uma realidade, pois a criminalidade continuará a crescer, provocará um novo ciclo de violência, desta vez com a população se armando, clandestinamente, para se "proteger". E reforçará a tese da pena de morte, oficial e extra-oficial, já que estará patente a incapacidade do estado em conter a onda de violência.

Ao contrário do que pensam alguns, o número de mortes em assaltos pouco tem a ver com a tentativa de reação por parte da vítima. Elas estão ligadas a outros fatores, como a índole violenta do criminoso, a necessidade de se afirmar diante da vítima e dos comparsas, ao uso de drogas durante as ações criminosas e até da sua imperícia no manuseio da arma. Ou a tudo isso ao mesmo tempo. Portanto, é vã a esperança de pessoas, como o Santiago, poderem "negociar" com o bandido pelo fato de estarem desarmadas. Tivemos exemplos recentes disso em Porto Alegre, onde a vítima foi assassinada sem esboçar qualquer reação.

Desarmar ou não a população é uma decisão que, no nosso entender, deve estar no âmbito de uma ampla política de segurança pública traçada pelo estado. Um estado que se preza, não pergunta à população se deve ou não permitir o uso de armas. Simplesmente determina e aplica a lei. Cabe aos cidadãos cumpri-la. Nesse aspecto, o RS estava num bom caminho, com uma política de segurança reconhecida internacionalmente e modelo para o país. Mas a população entendeu por "bem" detonar esse projeto, colocando no poder um governo que tem um secretário de segurança com coragem de dizer coisas tais como "não são as armas que matam, são os homens". Hoje, esta mesma população exige segurança. Só teremos segurança real, quando a população compreender a relação entre as escolhas que faz e o reflexo disso sobre a sociedade. No mais, é o caminho da obviedade e do imediatismo como o deste plebiscito.

Neste sentido - de um estado que não consegue cumprir seu papel - temos precedentes perigosos. Na legislação sobre o trânsito, por exemplo, o governo adotou medidas duras sobre os contraventores e está voltando, paulatinamente, atrás, sob pressão da "sociedade", que não aceita tais medidas. Como bem lembrou o Schröder, o número de mortes nas estradas, envolvendo caminhoneiros, diminuiu logo após a adoção da nova legislação. Mas em decorrência da pressão das empresas transportadoras, o governo recuou e o número de acidentes voltou a crescer. Quem não lembra da campanha que gente como Paulo Santana fazia contra os pardais eletrônicos, num inequívoco ato de desobediência civil, indispondo a população em relação às autoridades? Alguém garante que a mesma coisa não irá acontecer em relação à política de desarmamento? O governo acabará voltando atrás e fará isso num cenário muito mais complexo e em total descrédito.

Saindo desta posição maniqueísta, de simplesmente ser ou não a favor de tal estatuto, esta campanha pelo desarmamento tem a marca do "nas coxas", além de indícios de uma esquizofrenia coletiva, como boa parte das coisas que são feitas no Brasil.
Vamos pegar o caso da Rede Globo. Esta empresa se atirou de cabeça, sabe-se lá por que motivos, na campanha pelo "sim". Mas a Globo é a grande defensora de um modelo excludente de sociedade, que gera a miséria e a violência. Como se compatibiliza o fato da exclusão social com o discurso da anti-violência? Também há de se observar comportamentos por parte desta empresa que oscilam do tragi-cômico ao non sense. Na segunda-feira dia 3 de outubro, o Jornal Nacional mostra a matéria sobre a arma dourada de um traficante morto num confronto com a polícia do RJ. Nesta matéria, há a denúncia de um esquemão que ia desde o contrabando, até o especialista que dourava armas para integrantes do tráfico. Depois da novela, ou seja, num curto intervalo de tempo, a Globo exibe o filme "XXX" (Triple X), uma verdadeira ode ao banditismo. O personagem principal é um delinqüente que começa roubando um carro e se atira, com ele, de uma ponte, enquanto os seus comparsas filmam a cena. Esta é a primeira de uma série ininterrupta de violências que atravessam o "filme" de ponta a ponta. Num determinado momento, o "herói", submetido a uma sessão de tortura, diz ao seu torturador, que este não tem talento para tal "atividade". Este é o nível dos diálogos do filme. A pergunta que não quer calar é: como a programação da Globo se insere na campanha da anti-violência? Não conseguimos deixar de conjeturar sob os efeitos que um filme como este produz na cabeça de um débil mental que tem, como fetiche, dourar a sua AK-47. Conseguimos até imaginar a cena: um bando de traficantes reunidos num barraco num morro qualquer, torcendo para o "herói" daquele filme "irado" que a Globo coloca no ar. Por favor, não subestimem o papel que estes produtos anti-culturais exercem na cabeça das pessoas. A Globo se engajaria mais positivamente na campanha do desarmamento, se melhorasse a qualidade da sua programação.

Um outro aspecto que não podemos deixar de levar em consideração e que se encaixa no quadro de esquizofrenia coletiva, é a questão da violência provocada pelo naco-tráfico. Jogamos e não perdemos, que tem muito usuário de droga que vota no "sim" e não admite uma relação direta entre a violência e o consumo de drogas. Continuará consumindo-as, acreditando, "inocentemente", que este ato não faz parte de uma cadeia que envolve corrupção, violência e morte.

Refletindo sobre tudo isso, fica a gritante evidência da inconsistência de toda essa campanha. Não somos partidários da campanha "te-efe-pista" pelo "não" e tampouco da campanha "we are the world" pelo "sim", como bem observa o Hals. Quem lê o que escrevemos, pensa que somos intransigentes defensores do uso de armas legais. Muito pelo contrário. Não possuímos armas, não fomos educados, nem educamos nossos filhos para que as usem. Isso pode parecer contraditório em relação ao que escrevemos acima. Como o Schröder, também não somos babacas defensores de um pacifismo utópico. Quem tem facínoras estadunidenses com imunidade diplomática em bases dentro do nosso país e no Paraguai, não pode se dar a esse luxo.

O que nos preocupa mesmo é não endossar uma palhaçada como este plebiscito. Um governo que não toma para si a tarefa de regular as relações sociais e lava as mãos em relação à violência, deve ser denunciado por esta incapacidade. É a partir dessa perspectiva que votaremos no "não", mesmo sabedores do risco que corremos e convictos também que este risco não se extinguirá, caso o "sim" saia vencedor no plebiscito.

Plebiscito por plebiscito, gostaríamos de decidir também sobre outras questões, tais como, a renovação da concessão da Rede Globo e das outras empresas de mídia, a permanência de bases estrangeiras em nosso país, a reforma judicária, uma nova legislação eleitoral, o envio de tropas para o Haiti, se somos a favor da transposição do rio São Francisco, a descriminalização do aborto e da droga e por aí afora.

Eugênio Neves e Claudia Cardoso.

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