12 de junho de 2006

Nelson Sirotsky e a amnésia conveniente.

http://www.zerofora.hpg.ig.com.br/arquivo/me_46.htm

O jornal Já( http://www.jornalja.com.br ), de Porto Alegre, edição do mês de maio de 2006, publica uma extensa matéria intitulada "Duas décadas de imprensa". Esta matéria faz o balanço dos últimos 20 anos da imprensa no Rio Grande do Sul, dando ênfase à circulação dos jornais em Porto Alegre. Além de tratar dos aspectos editorias e comerciais destas publicações, traz entrevista com três diretores do setor: Carlos Alberto Bastos Ribeiro, Diretor Administrativo da Empresa Jornalística Caldas Júnior; Nelson Pacheco Sirotsky, Diretor-Presidente da Rede Brasil Sul de Comunicações e Paulo Sérgio Pinto, Vice-Presidente da Rede Pampa. Destas três entrevistas, destacaremos a de Nelson Sirotsky, que faz duas afirmações que não correspondem à realidade.

A primeira delas, contida no texto A polêmica com as pesquisas eleitorais, pág. 5, ao responder a pergunta "Que cuidados a RBS está tomando em relação a pesquisas eleitorais? Houve problemas como em 2002, em que teve até o seu editorial após o erro no resultado...", Nelson Sirotsky afirma: "Aquilo é em 1998, na vitória do Olívio sobre o Britto... Não é?"
Ao que o repórter insiste: "Não foi em 2002, na vitória do Rigotto sobre o Tarso..." Sirotsky reafirma: "Não, era Olívio e Britto. E o Olívio ganhou a eleição... É 1998 com certeza, porque depois, em 2002, tivemos de novo problemas com pesquisas. Mas aí não teve editorial. O Tarso reclamou, foi para o ar, disse que nós estávamos manipulando pesquisa. Mas aquilo ali foi papo de perdedor. O problema foi Olívio e Britto, que gerou inclusive toda essa confusão de PT com RBS, foi esse episódio que gerou aquele editorial."
Mais adiante, ainda sobre pesquisa eleitoral, Nelson Sirotsky insiste na sua versão dos fatos, afirmando que: "O que aconteceu em 1998 [2002]¹ foi que efetivamente houve um erro grave do Ibope em uma pesquisa. Nossos veículos divulgaram e o PT procurou transferir a propriedade daquela pesquisa à RBS. Quando a pesquisa era do Ibope. Divulgamos uma pesquisa que teve erros. Isso gerou todo aquele episódio."

Agora, vamos aos fatos. O editorial de Zero Hora, do dia 3 de novembro de 2002, página 19, que está estampado na própria matéria do jornal Já, foi publicado no primeiro domingo após o término da eleição (segundo turno) para o governo do estado. Esse editorial foi a resposta ao cancelamento espontâneo de assinaturas do jornal Zero Hora, que vinha acontecendo desde o primeiro turno, por muitas pessoas que ficaram indignadas com o tratamento que a RBS dava às pesquisas eleitorais. Este cancelamento recrudesceu e se tornou crônico, após o segundo turno. Nunca chegaremos a saber, exatamente, qual foi o número de assinaturas canceladas naquela ocasião, mas há especulações em torno de 25 mil.
O famoso editorial, assinado pelo próprio Nelson e intitulado A RBS, as eleições e as pesquisas, traz em destaque o seguinte:
- "Asseguro que a RBS jamais tentou interferir em pesquisas. Mesmo assim, as críticas nos levam a um exercício de humildade"
- "Peço desculpas por eventuais excessos cometidos em alguns de nossos veículos, após divulgação de boca de urna"
- "Uma comissão de representantes da sociedade analisará os procedimentos da RBS em pesquisas eleitorais e sugerirá aprimoramento para os próximos pleitos"

Além deste editorial, os ex-assinantes receberam, gratuitamente, a edição dominical de Zero Hora, com uma carta anexa, também assinada por ele, chamando a atenção do leitor para este editorial, onde a RBS tentava se explicar. A questão do cancelamento foi tão grave, que extrapolou o limite do departamento comercial e invadiu o terreno da credibilidade, ao ponto dos ex-assinantes receberem telefonemas, onde lhes era sugerido reavaliar a sua decisão em conversas com um colunista do jornal de sua preferência.
Outros desdobramentos também podem ser atribuídos a este episódio, como a demissão de Rogério Mendelski e de José Barrionuevo, notoriamente identificados com a campanha anti-petista que promoviam em seus espaços de atuação dentro da RBS. Além disso, a RBS lança o Guia de Ética e Responsabilidade do Social ainda no rastro desses episódios. Evidentemente, todos esses fatos são negados ou relativizados pela empresa.

A afirmação que Nelson Sirotsky faz de que o PT imputou à RBS a propriedade da pesquisa eleitoral é falsa. O fato é que Tarso Genro, ao avaliar a sua derrota, responsabilizou a RBS pela divulgação de pesquisa eleitoral comprovadamente manipulada pelo Ibope, a mesma queixa que os assinantes - muitos não petistas - fizeram ao justificarem o cancelamento da Zero Hora.
O que exatamente Nelson Sirotsky quer dizer com "confusão de PT com RBS"? Ele estaria se referindo só ao episódio das pesquisas, ou também ao cancelamento de assinaturas? Curiosamente, mesmo nunca admitindo tais cancelamentos, é sabido que a RBS acusou o PT de estar por trás de toda essa campanha, como também de estar por trás do lançamento da edição especial da Revista Porém, que vinculava esta empresa a escândalos financeiros e transações em paraísos fiscais. O que escapa à compreensão dos diretores da RBS, é que a população, naquele momento, movida por um grande sentimento de indignação, agiu espontaneamente sem nenhuma vinculação partidária. Infelizmente, nenhum partido de esquerda foi capaz de capitalizar esta indignação para promover um grande debate sobre o papel da mídia e a sua relação com a sociedade.

A segunda questão diz respeito ao monopólio na área da comunicação. Ao ser questionado sobre "as críticas ao fato de a RBS ter muitos meios de comunicação, uma concentração..", Sirotsky afirma: "São críticas decorrentes mais de uma ideologia do que uma realidade. A RBS não tem uma posição de monopólio, temos concorrentes em todos os mercados que atuamos. O que nós temos é uma liderança. (...) Essas discussões sobre concentração, monopólio são discursos acadêmicos, ultrapassados".
A primeira parte desta afirmação, por si só, já daria um tratado. Nem Nelson, nem a RBS, sentem-se vinculados à uma ideologia!!! Ele, Diretor-Presidente de uma empresa, Presidente da ANJ - associação nacional que reúne o patronato da mídia, parece viver num mundo em que só há ingênuos, para se dar ao desplante de dizer tamanho disparate. Mas não entraremos nesta análise e vamos nos ater, exclusivamente, sobre a questão do monopólio.

No box intitulado RBS em números que acompanha a matéria, pág. 5, apuramos o seguinte:

- 26 emissoras de rádio
- 18 emissoras de TV aberta
- 2 emissoras de TV comunitária
- 6 jornais diários
- Net Sul, sócia da plataforma nacional de televisão por assinatura
- Empresa de logística viaLOG
- Gravadora Orbeat Music
- Editora RBS Publicações
- Portal de serviços "hagah"
- Portal de notícias "clicrbs"
- 4,7 mil colaboradores em seis estados brasileiros, sendo 855 jornalistas

Estendendo esta pesquisa ao portal da RBS (www.rbs.com.br), ainda encontramos:
- Central Multimídia RBS Rural
- RBS eventos
- DIREKT, empresa de marketing
- Fundação Mauricio Sirotsky Sobrinho
- RBS Participações S/A, holding do Grupo RBS

A permanecer no mundo dos ingênuos, imaginado por Nelson Sirotsky, reza a lenda que a legislação brasileira sobre a Comunicação Social diz o seguinte:

- O Decreto-Lei nº 236, de 28 de fevereiro de 1967 (ainda do período militar) "estabelece que nenhuma empresa, ou pessoa, pode ter a propriedade de mais de dez emissoras de televisão em todo o território, e duas por Estado, sendo cinco em VHF (canais de 1 a 13) e cinco em UHF (do canal 13 para cima)"²

- No § 5º do Artigo 220 da Constituição Federal, Capítulo V da Comunicação Social, está escrito: "Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio".²

Confrontando-se o que diz a lei e os números que a RBS apresenta, pode-se afirmar, com segurança, que estamos diante de um monopólio de comunicação, que possui três características distintas de concentração de propriedade da mídia a saber²:

- concentração horizontal: controla a televisão aberta e paga. As opções são quase inexistentes, uma vez que os mesmos proprietários controlam estas duas modalidades de comunicação.

- propriedade cruzada: é a ampliação do monopólio do setor através da posse de outros meios, como jornais, revistas, editoras, gravadoras, provedores de Internet, além de atuar no ramo do agro-negócio e setor financeiro.

- monopólio em cruz: é a reprodução, em nível regional, do oligopólio de propriedade cruzada, ou seja, nas cidades mais importantes abrem ou compram jornais e instalam repetidoras de rádio e televisão.

A bem da verdade, deve-se dizer que Nelson Sirotsky não deixa de ter razão, ao pensar que vive no mundo da fantasia, porque, quando se trata de cumprir a lei, no que diz respeito à comunicação social no Brasil, a Constituição, sobre este aspecto, é uma peça de ficção. Assim, o que é claramente um monopólio de comunicação, num passe de mágica, transforma-se em "liderança no setor". E toda a vez que alguém resolve discutir publicamente o modelo de mídia que temos neste país; o papel que ela desempenha na construção da realidade e da subjetividade; suas relações espúrias com o poder econômico; a sua parcialidade travestida de isenção, é acusado de fazer um "discurso acadêmico ultrapassado".
Nelson Sirotsky e todos os demais patrões da mídia adotam a estratégia de atacar com a desqualificação do discurso aos que tentam esclarecer a população sobre a democratização da comunicação e normatização da mídia que, na sua quase totalidade, opera ilegalmente.
A investida contra o mundo acadêmico, feita por Sirotsky, tem a explicação no fato de que é daí que partem a maioria das críticas em relação a RBS. Pedrinho Guareschi e Osvaldo Biz, ambos professores da PUCRS, editaram quatro livros desde 2002, denunciando esse monopólio midiático, sendo que um deles - Diário Gaúcho: que discurso, que responsabilidade social - analisa, diretamente, um de seus jornais. Além disso, demonstraram, através de pesquisa, que 64% das televisões comerciais do RS são da RBS (monopólio ou liderança???). Por outro lado, a RBS se apropria da expressão "responsabilidade social" e a incorpora ao seu guia de ética, expressão esta que já era utilizada freqüentemente pelos seus maiores críticos.
Além da estratégia da desqualificação das críticas, o patronato da mídia usa táticas ainda mais insidiosas ao levantar os fantasmas da censura e do autoritarismo, quando se busca regular o seu funcionamento. Um bom exemplo disso foi a investida feroz das empresas de comunicação contra a implantação do Conselho Federal de Jornalismo.

É muito difícil de acreditar, depois disso tudo, que Nelson Sirotsky seja uma pessoa desinformada ao ponto de confundir datas e eventos. É inadmissível a idéia de que ele não saiba que o império de mídia que comanda foi constituído durante a ditadura militar, beneficiário direto do autoritarismo e da censura. E mais inacreditável ainda, é que ele não tenha memória para fatos que aconteceram há menos de quatro anos atrás. O que fica claro, é que esta aparente amnésia é, na verdade, uma tentativa deliberada de manipular e distorcer os fatos, o que, aliás, reflete-se diretamente sobre toda a atuação da empresa que ele comanda. Basta ler os seus jornais, ouvir os seus comentaristas e acompanhar a sua programação. Nelson Sirotsky, na sua entrevista ao jornal Já, só engana os incautos e desinformados. Em outra entrevista, desta vez ao sitio Master em Jornalismo ( http://www.masteremjornalismo.org.br/entrevistas/nelson/entrevista.htm ), pertencente ao Centro de Extensão Universitária, da Faculdade de Comunicação da Universidade de Navarra, ligada a Opus Dei, ele afirma: "Zero Hora é um jornal profundamente identificado com a comunidade onde atua, focado no interesse de seus leitores e que defende princípios básicos da liberdade de expressão, da liberdade de mercado e da livre iniciativa". Isto é um verdadeiro deboche. Tentar convencer as pessoas de que liberdade de expressão e liberdade de mercado são da mesma natureza é como dizer que azeite e água se misturam. É cada vez mais evidente o quanto o interesse dos anunciantes (capital) prevalece sobre o direito à informação (cidadania).
Tal discurso, acrescido ao da imparcialidade, da isenção e da ética, é meramente um bordão publicitário para mascarar o fato de que a RBS está nitidamente ligada ao campo conservador, ao grande capital e que é um instrumento na mão da Família Sirotsky para defender os seus interesses. Mas o alinhamento político e econômico da RBS não seria um problema em si.

O problema é que este alinhamento é negado e escamoteado através da manipulação e da distorção dos fatos, quando não da mentira escancarada. Acrescente-se a isso, o fato de que a RBS detém o monopólio das comunicações no Rio Grande do Sul, onde a concorrência, citada por Sirotsky, é falaciosa, visto que as demais empresas também se alinham ao campo conservador e ao capital. A única disputa que existe é a de mercado, sem nenhuma preocupação com a qualidade da informação e o direito que a cidadania tem a ela.

Midi@ética
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¹ Informação, entre colchetes, do próprio jornal Já.
² Guareschi & Biz. Mídia, Educação e Cidadania. RJ: Editora Vozes, 2005.

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