29 de janeiro de 2009

A fraude do Pontal do Estaleiro

O que realmente interessa: quem pagou os R$ 7, 2 milhões pelo terreno, hoje avaliado em R$ 150 milhões?

Por Najar Tubino*

Durante dois meses me dediquei a investigar um dos maiores problemas que a cidade de Porto Alegre enfrenta neste momento: a especulação imobiliária, cuja meta principal é privatizar a orla do rio Guaíba. Como argumento especial, que dá uma cara legal e democrática ao projeto, está a copa de 2014. O caso do Pontal do Estaleiro, uma área de 42 mil metros quadrados, onde antigamente funcionava o Estaleiro Só, é exemplar. A empresa, fundada por três portugueses em 1850, faliu em 1995. Desde 1973, a família Só estava afastada dos negócios. Até 2006, a questão ficou na mão da justiça estadual – tanto a cível, como a trabalhista.

Aliás, ainda continua, a empresa agora é Massa Falida do Estaleiro Só S/A, com uma meia dúzia de processos estaduais e uma encrenca nacional, no Rio de Janeiro.

A encrenca é simples: quando o Estaleiro fazia um projeto para um armador, precisava encomendar junto com a planta, um seguro. O armador só autorizava a construção, se o seguro fosse pago antecipadamente. O síndico da Massa Falida, Fernando Lorscheitter, diz que o processo no Rio de Janeiro, que corre na 1ª Vara Cível, é anterior à venda do terreno, que ocorreu em 2006.

Não é a versão que ouvi do advogado trabalhista, Aírton Forbrig, responsável por 90% dos processos dos mais de 400 funcionários do Estaleiro Só, que ainda corre da justiça estadual. Segundo Forbrig, um belo dia, um ex-advogado da empresa ligou para ele, falando que havia um processo envolvendo o Estaleiro Só, no Rio de Janeiro. E deu o número do processo. Aírton Forbrig foi conferir. A justiça carioca é lenta demais. O responsável pela cópias do processo disse ao advogado que demoraria algum tempo (dias) para conseguir a cópia. Porém, se ele desse uma gorjetinha, no final da tarde estaria pronta. Ele fez isso.

Então Forbrig descobriu que havia cerca de quatro seguros pendentes e em disputa judicial com o Instituto de Resseguros do Brasil. Uma delas envolve um seguro de US$ 5 milhões e outra US$ 9 milhões. A tática, colocada em prática pelos administradores do Instituo era bem simples: a prescrição, o arquivamento do processo. Logicamente, o dinheiro ficaria com a entidade, na época administrada por integrantes do PTB, indicados pelo deputado cassado Roberto Jefferson.

É óbvio que o advogado gaúcho melou a transação e requisitou a disputa para a justiça trabalhista. Tudo continua correndo nas mãos da ilibada justiça brasileira.

Esta é apenas a última ponta dessa negociata que eu descobri. A principal é a venda do terreno. Um grupo de investidores - segundo noticiou a imprensa gaúcha, liderados por um empresário chamado Saul Veras Boff – montou a empresa SVB Participações. Comprou o terreno R$ 7,2 milhões, pagos em prestações. Perguntei ao síndico da massa falida se ele sabia de onde saiu o dinheiro. Ele disse que não sabia, pois os pagamentos são feitos diretamente na justiça.

No dia 7 de junho de 2006, logo após a transação, o Jornal do Comércio, de Porto Alegre, noticiou o seguinte:

“- As pretensões do empreendedor só serão viabilizadas, com a alteração da lei complementar n.º 470, de 2002, que, entre outras coisas, veda a construção de prédios residenciais naquele trecho da orla do Guaíba. O diretor-presidente da SVB Participações, Saul Veras Boff, o diretor do grupo Maggi, Fischel Baril e o arquiteto Jorge Debiagi já apresentaram, em maio, ao prefeito José Fogaça, um esboço do projeto. O passo seguinte será convencer os vereadores de Porto Alegre a alterar a lei.”

A pesquisa das notícias sobre o Pontal do Estaleiro foram feitas pela repórter Daiane Menezes, do Jornal Já, de Porto Alegre, que também está investigando o caso. O projeto do arquiteto Debiagi é formado por um conjunto de espigões residenciais, destinados aos emergentes da cidade, além de uma marina, e outras coisas mais. O detalhe maior: eles convenceram os nobres e honestíssimos vereadores da capital gaúcha, a mudar a Lei. Numa sessão tumultuada, no apagar das luzes de 2008, com a presença de dezenas de funcionários da Goldztein Cyrela (na verdade muito mais Cyrela que Goldztein), - tinha uma lista de presença -, o negócio passou. O prefeito José Fogaça vetou. Mas também convocou uma porção de vereadores para o secretariado local, dando vaga aos suplentes.

Uma fonte da Câmara de Vereadores já me confirmou que existe um parecer favorável à derrubada do veto. O vereador do PSOL, Pedro Ruas, que está voltando ao legislativo municipal, acha muito difícil a derrubada.

Agora, o que realmente interessa: quem pagou os R$ 7, 2 milhões pelo terreno? O governador Blairo Maggi, do Mato Grosso, chefe do grupo Amaggi (foi criado pelo gaúcho de Torres André Maggi, pai do governador e já falecido). Blairo é o ganhador do troféu Motoserra de Ouro, do Greenpeace. Conhecido internacionalmente por defender a substituição da floresta amazônica por uma grande plantação de soja. O seu grupo construiu um terminal de exportação em Itacoatiara, no Amazonas. Eles também construíram a cidade de Sapezal, na Chapadão dos Parecis.

Quem é a empresa que atualmente é responsável pelo projeto do Pontal do Estaleiro? A BM Participações, seguindo a mesma lógica da empresa, que comprou o terreno, usaram as iniciais para montar a segunda e definitiva dona do terreno. Ainda não peguei a cópia do contrato da tal BM Par. Pouco me importa. Aprendi a lidar com estas sutilezas em 24 anos de cobertura do setor agropecuário. Morei 13 anos em Campo Grande (MS) e trabalhei várias vezes em Cuiabá, junto com o jornalista Mário Marques, dono do site Página Única, e de um jornal com o mesmo nome.

Se alguém não gostar do título ou da definição da matéria – a fraude – podemos substituir por falcatrua. E da grossa. O terreno , hoje ,é avaliado em R$ 150 milhões.

*Najar Tubino é jornalista, pesquisador e palestrante sobre meio ambiente. Najartubino@yahoo.com.br
Fonte: EcoAgência

28 de janeiro de 2009

Clã Sirotsky condenado a pagar indenização milionária

Um passarinho nos contou e fomos conferir no blog do Políbio Braga: dia 30 de dezembro de 2008, o juiz Eduardo Kothe Werlan condenou a Família Sirotsky, nas figuras de Jayme Sirotsky, Nelson Pacheco Sirotosky, Carlos Eduardo Schneider Melzer, José Pedro Pacheco Sirotsky, Sônia Sirotsky, Marcelo Sirotsky mais Luiz Alberto Barichello e Terra Ville Participações Ltda., a pagar indenização de R$ 24.525.000.00 (vinte e quatro milhões, quinhenteos e vinte e cinco mil reais) para Mário César Terra Lima, idealizador e primeiro dono do condomínio horizontal Terra Ville.

Destacamos algumas partes da sentença [cabe recurso] de 52 páginas e vocês podem tirar as conclusões que quiserem a respeito de como afastar alguém que "atrapalhe o negócio":

[...] constata-se que os problemas verificados integram a atividade e não comprometem a qualificação profissional do engenheiro Mário César Terra Lima. Isto ficou estampado no laudo sério e irretocável da engenheira-perita Isabela Beck da Silva Giannakos nos autos apensos da cautelar da perenização da prova. A acusação de incapacidade laboral apenas escamoteava a intenção de afastar dos negócios o idealizador do Condomínio Terra Ville. [...]

[...] A tese argüida, no sentido de que o engenheiro Mário César teria assinado alguns dos contratos mencionados sem condição de saúde física e psicológica que lhe permitisse adequada avaliação e comprometimento do ato não pode ser acolhida, primeiro porque inexiste laudo técnico datado da época da assinatura para sustentá-la e segundo porque o próprio, autor Mário César Terra Lima disse ter firmado os pactos de bom grado, ainda que entendendo que merecessem alguma ressalva, assinando-os mesmo após ter sido alertado pelo advogado de acordo com seu depoimento de fl. 1458: “ ... Eu voltei e assinei tudo o que me pediram. Tudo o que me pediram eu assinei. E vou lhe dizer eu assinei tanta outras vezes porque tinha confiança absoluta no seu Jaime e no filho dele. Tinha confiança absoluta na família ... Temos que fazer uma reunião eu, o senhor (Jaime) e o Marcelo junto ... então a mudança essa, patrimonial, para a minha família, foi chocante. Então eu mostrei para o seu Jaime isso, ele concordou, naquela época ele concordou que nós tínhamos que rever, então, e assinar outro contrato ...”; fl. 1473: “... Eu jamais falei que o contrato era nulo. Jamais falei que por eu estar doente o contrato era nulo. Isso não.”. Na realidade Mário César não se revela apenas inteligente na área de engenharia, foi sempre muito experto para os negócios como na ocasião em que relatou ter adquirido área de 14 hectares por cerca de cem mil reais, a qual foi incorporada aos muros do Terra Ville e passou a valer o dobro para cada um de seus vários lotes produzidos com o espaço original.

Desse modo, ainda que os contratos reflitam apenas parte da realidade negocial existente, eles não podem ser considerados nulos ou passíveis de anulação posto que sob o ponto de vista formal não apresentam ou apresentaram vícios na origem nem durante sua execução, estando alguns inclusive já resolvidos. [...]

[...] De igual sorte, em feito conexo, constata-se a inexistência de descumprimento de cláusula contratual por parte da empresa Terra Lima Construções e Incorporações Ltda., representada por Mário César Terra Lima, que pudesse resultar na rescisão do contrato de prestação de serviços, eis que não restaram comprovados vícios construtivos capazes de sustentar tal pedido feito pelos atuais representantes da empresa Terra Ville nos termos da análise da produção antecipada de prova, bem como pela falta de comprovação da adoção de conduta duvidosa na liberação das plantas junto à Prefeitura e ameaças aos demandados por parte de Mário César, conforme decisão exarada nos autos nº 001/1.05.0161195-2 (ação de resolução de contrato cumulada com cobrança de multa contratual e indenização por danos morais), processo que demonstrou o descumprimento do pactuado por parte da contratante Terra Ville Ltda. Pela perda do “affectio societatis”. [...]

O total das indenizações pelos três módulos I, II e III globaliza R$ 24.525.000,00.

Aérea do condomínio de luxo na zona sul de Porto Alegre.
Parte das terras pertenceram ao falecido Maurício Sirotsky Sobrinho.

FSM 2009

O ponto de partida da caminhada foi a praça Pedro Teixeira (Escadinha) ao lado da Estação das Docas. Representando a vinda do FSM da Àfrica para a Amazônia, os povos indígenas da região foram recebidos pelos povos africanos e afrodescendentes e juntos compartilharam uma Ceia Sagrada. Dezenas de milhares de pessoas participaram da marcha. Segundo a polícia, cerca de 60 mil. Segundo organizadores, número de participantes foi bem maior, podendo chegar a quase 100 mil pessoas. Nem a chuva que caiu em meio à caminhada, tirou o ânimo dos participantes (Foto: Eduardo Seidl). [...]

“O mundo parece se inverter a nosso favor”

Na coletiva de imprensa de abertura do FSM 2009, membros do Comitê Internacional do Fórum apostam que momento único da conjuntura internacional, com as crises financeira e ambiental, dará um novo impulso ao movimento por um outro mundo possível. E fazem um pedido especial aos jornalistas da grande imprensa: uma cobertura séria dos debates e atividades que ocorrerão em Belém nos próximos dias. [...]




Acompanhe nesta quarta, dia 28, a partir das 10h00 (horário de Brasília), a transmissão ao vivo do Fórum Social Mundial, direto de Belém.

Fórum Mundial de Mídia Livre

Qual a responsabilidade da mídia diante da crise?

O comportamento da mídia na recente crise financeira internacional foi tema de debate na abertura do Fórum Mundial de Mídia Livre. Uma das conclusões foi que a chamada grande mídia não ofereceu explicações satisfatórias diante da crise, muito embora, durante anos, seus "especialistas" tenham se redobrado em esforços para legitimar o modelo neoliberal de globalização. Agora, cultivam uma conveniente amnésia que anda de mãos dadas com a diluição de responsabilidades pelo que está acontecendo na crise mundial. [...]

(26/01/2009 12:07)

Segue abaixo a intervenção que acabo de fazer na mesa "Para Ampliar o Midialivrismo", no Fórum Mundial de Mídia Livre. É uma reflexão para que possamos começar a debater o caráter do movimento que estamos construindo.


Nós somos blogueiros, revisteiros, documentaristas, fotógrafos, ilustradores, jornalistas, radiocomunicadores, professores que não têm a mídia comercial como referência do seu trabalho... Somos ativistas da luta pela democratização das comunicações. Somos muitos. Estamos hoje produzindo boa parte das informações que constroem a reflexão do movimento popular mundo afora. Somos muitos e por isso já incomodamos demais. [...]

Renato Rovai

Agência Carta Maior:

• Liberdade de expressão e mídia alternativa: dois anos depois
• Marcos Dantas: Uma outra mídia é possível (e necessária)
• Movimento de Mídia Livre debate estratégias de ampliação

25 de janeiro de 2009

Camelódromo abre as portas

O CPC - Centro Popular de Compras de Porto Alegre - conhecido como Camelódromo, inaugura amanhã, dia 26 de janeiro. Ao ler a lei e o decreto [alterado posteriormente] que criou e regulamentou o CPC, buscamos algum item que tratasse do estacionamento. Tal qual as lojas da praça de alimentação, podemos inferir que o estacionamento se trata de uma Unidade Comercial, ou seja, "Toda e qualquer unidade de exploração livre pela CONCESSIONÁRIA, tais como salões, quiosques, bancas" [Resolução 5/08 de 4 de setembro de 2008, DOPA 10/09/08, pág. 14].

Porém tanto a lei como o decreto não preveem, ou não são claros, a respeito de tais unidades comerciais, o que nos deixa de cabelos em pé frente à lisura do empreendimento. O Decreto nº 15.472/2007 dispõe:

Art. 8º Os comerciantes populares e os demais estabelecimentos autorizados* para o exercício de suas atividades no Centro Popular de Compras – CPC, serão identificados mediante placa de uso obrigatório a ser afixada junto ao seu local de comércio, [...].

E o Art. 12: O uso de mesas e cadeiras nas áreas em frente aos estabelecimentos localizados na área de alimentação do Centro Popular de Compras – CPC, será requerido à Secretaria Municipal da Produção, Indústria e Comércio – SMIC, com a sua inclusão no alvará de autorização quando deferido.

As lojas da praça de alimentação aparecem na legislação, mas nada, nenhuma citação ou regra para o estacionamento que, segundo o Jornal Já, oferece 216 vagas! Em matéria, no mesmo jornal, do dia 9/11/08, somos informados que:

Dúvidas não faltam a respeito da obra, orçada em R$ 14 milhões e entregue por licitação à construtora Verdicon, empresa de Erechim, especializada na construção de presídios. Ela constrói o prédio de 20 mil metros quadrados, em dois módulos, em troca da permissão para explorar comercialmente o local por 25 anos, com direito a duas renovações de cinco anos cada. [...]
Inicialmente, tudo seria explorado pela concessionária*, mas depois de uma denúncia do Jornal do Centro - de que a empresa iria arrecadar R$ 120 milhões a mais, sem nenhuma contrapartida ao município, houve mudança. O estacionamento será explorado pela EPTC, até uma nova licitação.

Nós não sabemos em que pé anda a tal licitação do estacionamento. Cabe registrar, que a sua existência gerou polêmica, com resposta de baixo nível do Secretário Municipal da Produção, Indústria e Comércio Idenir Cecchim [permaneceu no cargo] sobre ato da Ver. Sofia Cavedon (PT) ao atender o interesse público da população portoalegrense.

*Grifos nossos.
Fotos: Jornal Já

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Atualização às 20h47 min:

Do insuspeito ClicRBS lido no blog da Ver. Sofia Cavedon:

Exigências dos bombeiros adiam abertura do camelódromo nesta segunda-feira

Prefeitura ainda não tem previsão para cumprir com as exigências do Corpo de Bombeiros

A prefeitura de Porto Alegre afirmou na tarde deste sábado que não inaugurará o Centro Popular de Comprar (CPC) nesta segunda-feira, como estava previsto. Hoje, após visitar o local para a realização de uma vistoria, o Corpo de Bombeiros fez duas exigências para a liberação do alvará da obra. Continuação AQUI.

E mais notícias sobre o CPC-Camelódromo AQUI.

Kayser

Por que a ZMentira não dá emprego pro Busatto , se está tão "preocupada" com o dito cujo? Ou sugere sua reabilitação, como bem apontou o Feil, em seu blog, nos governos fumaça ou rainha das pantalhas?

23 de janeiro de 2009

Sobre o Hizbollah

Caia Fittipaldi traduziu uma entrevista [longa] de Joseph Alagha* para a Religioscope, em 17 de maio de 2007, sobre o Hizbóllah. Como tal pauta não será debatida na mídia corporativa, disponibilizamo-la no blog:

Religioscope – O Hizbóllah não é simples resultado da invasão israelense de 1982. Parece ser também resultado da mobilização política da comunidade xiita e de sua islamização. O senhor pderia falar um pouco sobre os aspectos históricos desses dois momentos?

Joseph Alagha – O Hizbóllah não surgiu, como movimento da resistência islâmica, do nada, é claro. É o resultado de um longo processo histórico que começa antes de o Hizbóllah estruturar-se. Até os anos 90s, a comunidade xiita esteve sub-representada numa paisagem política, no Líbano, dominada pelos cristãos – especialmente os maronitas – e os sunitas. Socialmente e economicamente, a comunidade xiita também vivia sob exclusão. Nos anos 50s e 60s, ser xiita ainda era uma espécie de desgraça, era ser cidadão de terceira classe.

Dia 30/12/1957, o líder da comunidade libanesa xiita morreu, Sayyid[1] Abdul Husayn Sharafeddin. O presidente da república, Kamil Sham'un (1900-87), solicitou que fosse enviado do Iran um outro líder religioso; o enviado foi Imam[2] Sayyid Musa al-Sadr (1928-78?). Curiosamente, porque a história é cheia dessas ironias, foi o mesmo presidente libanês, Kamil Sham'un, quem pediu a intervenção dos marines dos EUA, no Líbano.

Musa Sadr nasceu em Qom, Iran, cidadão iraniano portanto, embora de ascendência libanesa. É filho do Aiatolá Sadr al-Din Sadr (falecido em 1954) que nasceu em Tiro. Esse, Musa Sadr, foi o líder carismático que mobilizou a comunidade xiita no Líbano. Em 1969, ascendeu ao posto de líder do Supremo Conselho Islâmico Xiita o que lhe deu condições de prosseguir mais firmemente no trabalho de estabelecer instituições sociais e econômicas para a comunidade xiita. Suas iniciativas abriram muitas possibilidades e progressivamente promoveram a integração dessa comunidade no sistema político do Líbano.

Mas o Imam Musa Sadr jamais pensou em "Estado islâmico", ideia que o Hizbóllah só desenvolveria nos anos 80s. O objetivo de Musa Sadr foi integrar a comunidade xiita no sistema libanês. Mas vale observar também que a política da infitah, ou "abertura" para outras comunidades libanesas, só avançou depois do Acordo de Ta'if (1989[3]), largamente influenciado pelo pensamento de Musa Sadr.

Em outras palavras, a politização da comunidade xiita aconteceu no período em que Musa Sadr foi líder religioso e tem fundamentos sociais, políticos e militares. Em janeiro de 1975, meses antes de começar a guerra civil, Musa Sadr fundou um movimento islâmico de resistência, Harakat al-Muqawama, mais conhecido pela sigla "Amal" [de Afwaj al-Mouqawama Al-Lubnaniyya, "Brigadas da Resistência Libanesa"]. Aspecto interessante da política de Musa Sadr são os contatos e relações que estabeleceu com o arcebispo dos católicos gregos, Grégoire Haddad; juntos, criaram o "Movimento dos Carentes", Harakat al-Mahrumeen. A resistência do grupo Amal nasceu de fato desse grupo "dos Carentes", que não tem identidade islâmica.

O final dos anos 70s coincidiu com a primeira invasão de Israel e com a volta do Imam Khomeini, do Iran. Esse retorno como que hipnotizou, literalmente, a comunidade xiita no Líbano e alterou-a profundamente, também no plano ideológico. Pela primeira vez, desde os tempos do Profeta e do Imam Ali, os xiitas estavam em posição de poderem estabelecer um Estado islâmico. Esse sucesso acelerou muito a mobilização da comunidade xiita no Líbano.

É importante destacar que, embora Imam Sadr evitasse usar palavras de ordem do islamismo, como as que se encontram explícitas nos discursos de Khomeini, os discursos de ambos são quase idênticos. Ambos sempre disseram que os islâmicos têm o dever de lutar contra Israel; ambos têm a mesma disposição combativa. Ao mesmo tempo, ambos, Khomeini e especialmente Musa Sadr, sempre pregaram a convivência pacífica entre todos os libaneses, como um tesouro do qual ninguém deveria abrir mão. Khomeini desenvolveu uma abordagem binária, de oposição entre opressor e oprimido – abordagem que permite alianças de cristãos e muçulmanos libaneses, por exemplo.

A militância xiita, iniciada com o trabalho do Imam Musa Sadr, islamizou-se, assim, no contexto da emergência do Islam no Iran, no início dos anos 80s. No Líbano, a exportação da Revolução Islâmica foi um sucesso.

O Hizbóllah, como ideologia religiosa, começou em 1978, mas só se estabeleceu como movimento em algum momento entre 1982 (invasão de Israel ao Líbano) e 1985 (apresentação do manifesto do grupo, por Shaykh Ibrahim al-Amin), segundo o qual o evento 1, acima, tem a ver com a formação do grupo. Em 1979, logo depois da 'vitória' da Revolução Iraniana, apareceu o logotipo do Hizbóllah; o nome foi criado por al-Musawi, um Sayyid de Najaf, Iraque, que depois foi segundo secretário-geral do Hizbóllah. Al-Musawi foi professor do atual líder do movimento, Sayyid Hassan Nasrállah.

Religioscope – Como o senhor define o DNA do Hizbóllah?

Joseph Alagha – Basicamente, se pode dizer que o Hizbóllah é um movimento Islâmico jihadi progressista. O uso do termo "jihad" não nos deve levar a pensar que o Hizbóllah seja inerentemente um grupo radical, para o qual a violência seja a única via a considerar. É verdade que seu principal objetivo foi, é claro, militar, profundamene ligado à resistência a Israel (al-Muqawama al-Islamiyya), mas não exclusivamente ligado a isso. Além do fato de que o Partido de Deus conseguiu aproximar atores cristãos e sunitas, em algumas de suas lutas políticas, a jihad[4] do Hizbóllah não é luta militante que vise a derrubar um governo 'de infiéis'; essencialmente, é um esforço moral para alcançar a auto-disciplina.

Parece anedótico ou superficial, mas, em vários sentidos, essa filosofia da al-Jihad al-Akbar ("a grande luta") tem sido traduzida em ação, com resultados políticos consideráveis. O movimento não apenas tem-se mantido distante da corrupção que corrói a reputação de todas as organizações políticas libanesas, mas também desenvolveu uma política interna de absoluta transparência, com efeitos também sobre as ambições pessoais que são, pode-se dizer, religiosamente autolimitadas. Quando, no Líbano, todos os políticos têm fama de levar até as poltronas dos gabinetes quando deixam os cargos, o Hizbóllah tem uma política de poder rotativo que visa, diretamente, a evitar a corrupção burocrática. Os quadros do movimento têm de trocar regularmente de cargos (tanto mais seguidamente quanto mais importante o serviço, considerados os objetivos do movimento), e trocam.

O Hizbóllah não é movimento monolítico; é uma coalizão de clérigos xiitas sob a coordenação do Conselho al-Shura, que é mais alto corpo de tomada de decisões no Partido de Deus, formado de sete 'ulama[5] libaneses. São frequentes as disputas e debates internos, sobretudo porque todo o sistema repouca na fé, não no sentido de uma ideologia, como no Estado soviético, e virtualmente qualquer um pode contestar uma interpretação ou o acerto de uma decisão. Isso já levou a uma divisão no movimento, quando Shaykh Subhi Tufayli, um dos pais fundadores e ex-primeiro secretário do Hizbóllah, deixou o movimento, depois de um confronto com Nasrállah. Nasrállah foi eleito secretário-geral e Shaykh Tufayli entendia que seria ele o sucessor óbvio, considerados os critérios da administração interna do Partido. Subhi Tufayli mantém-se muito fiel à narrativa anterior do Hizbóllah, mais marcial e profundamente anti-ocidental. E o atual secretário-geral, Nasrállah, considera aquele discurso desatualizado, antiquado e busca orientar o partido na direção do interesse nacional e da necessidade de negociar e ceder, por considerações políticas estratégicas.

Religioscope – O Hizbóllah exibe três identidades, cada vez mais discrepantes entre elas: tem uma identidade religiosa, tem um caráter político e libanês e é actante na geopolítica do Oriente Médio. O senhor poderia comentar rapidamente essa tripla identidade?

Joseph Alagha – O desenvolvimento ideológico do Hizbóllah pode ser dividido em três fases. De 1978, com a chegada do Sayyid Abbas al-Musawi ao vale do Bekaa, até 1984-85, quando houve a instituicionalização do Hizbóllah, o Partido de Deus tem de ser visto como movimento essencialmente religioso.

A segunda fase, vai de meados dos anos 80s até o início dos anos 90s. Embora se veja, nesse tempo, uma mistura de ideologias religiosas e políticas, mesmo assim é claro que a política era dominante. Creio que o discurso religioso fosse principalmente uma ferramenta para justificar as instâncias políticas do movimento.

Em 91, Sayyid al-Musawi defendeu a idéia da abertura para outras comunidades e encorajou o movimento a aproximar-se de comunidades libanesas, para integrar-se no sistema político libanês e na esfera pública. Vê-se a libanização do Hizbóllah ao longo dos anos. A partir dos 90s, o Partido de Deus planejou uma estratégia para integrar-se nas instituições libanesas. Mas isso não implica que o Hizbóllah fosse partido revolucionário: não exigiu qualquer alteração radical na constituição e reconheceu o Tratado de Ta'if (1989), que pôs fim à Guerra Civil, as relações especiais entre Síria e Líbano, e as várias reformas políticas.

Na terceira fase, a era do programa político, de 1992 até hoje, o Hizbóllah integrou-se e continua a integrar-se cada vez mais na esfera pública libanesa, com aspiração até a controlá-la, depois da Segunda Guerra do Líbano.

O Hizbóllah é actante na geopolítica do Oriente Médio, por causa de suas relações com a Síria e a relação muito especial com o Iran. O Iran é ideológico e religioso. O laço que liga o Hizbóllah e o Iran, especialmente com o Imam Ali Khamenei, presidente da República Islâmica entre 81 e 89 e, depois, eleito líder supremo do país, baseia-se no velayat e-faqih e em seu importante apoio militar e financeiro.

"Velayat e-faqih", literalmente "a guarda do jurisprudente", descreve o papel central e de comando que os religiosos devem ter na vida política. Dado que o Hizbóllah aceita esse princípio religioso, torna-se, na prática, 'servidor', ou quadro político, do líder supremo do Iran. Além disso, o Iran também tem sido o principal financiador apoiador do Hizbóllah desde que foi criado. Em 1995, contudo, Ali Khamenei, ele mesmo, indicou dois clérigos do Hizbóllah – Nasrállah e Yazbik, como seus representantes religiosos no Líbano. Essa decisão permite que o partido de Nasrállah receba diretamente o khums, uma modalidade de apoio financeiro que deriva do imposto religioso (cerca de 20% da renda, acrescida ao imposto tradicional, o zakat) sem que os fundos tenham de passar por fundações iranianas. Essa situação contribuiu consideravelmente para a autonomia do Hizbóllah. É portanto simplista assumir que a relação entre o Iran e o Hizbóllah seja algum tipo de relação mecânica. É relação dinâmica e em evolução, baseada em redes formais e informais entre os clérigos do Hizbóllah e os clérigos iranianos, a relação que liga o Partido de Deus e o Iran é muito complexa e não é relação unidimensional.

A relação entre o Hizbóllah e a Síria é menos complexa e mais pragmática: dado que a importação de armas exige aprovação da Síria, o movimento é absolutamente obrigado a manter boas e estratégicas relações com o regime sírio.

Religioscope – A retirada da Síria criou um vácuo político no Líbano. Essa situação encorajou o Hizbóllah a expor-se como protetor da comunidade dos xiitas, mais do que como partido nacional. O que resta da fórmula que Nasrállah criou "De Partido de Deus, rumo a partido de governo"?

Joseph Alagha – Enquanto os sírios permaneceram no Líbano, o Hizbóllah não aspirou a chegar ao Gabinete, quer dizer, ao ramo executivo do governo, no qual se tomam as decisões por maioria de 2/3, em votação, nos casos em que não haja consenso.

Nos termos do Acordo de Ta'if, também o Parlamento, como o Gabinete, está dividido, meio a meio, entre muçulmanos e cristãos. Assim, o atual Gabinete é formado de 12 cristãos e 12 muçulmanos. Pela regra do equilíbrio entre os grupos religiosos, os xiitas só podem alcançar um máximo de cinco cadeiras. Portanto, naquele momento, o Hizbóllah não tinha meios para promover aquela agenda.

Contudo, depois que os soldados sírios deixaram o Líbano em 2005, surgiu uma oportunidade. O Partido de Deus buscou preencher esse vácuo político, para conseguir influenciar as decisões políticas do Gabinete. E, de fato, foi operação bem-sucedida. Com apenas dois ministros, todo o movimento conseguiu que o governo de Siniora reconhecesse oficialmente e explicitamente o status de "movimento de resistência", do Hizbóllah. Em termos políticos táticos, foi movimento muito inteligente.

O Partido de Deus, sozinho, não poderia influenciar as principais decisões do Conselho de Ministros. Mas, porque comprovou sua habilidade para jogar o jogo da política libanesa, Nasrállah conseguiu construir uma aliança com o Movimento Patriótico Livre, do maronita Michel Aoun. Essa aliança permitiu que o Hizbóllah obtivesse 1/3 do poder de veto no Conselho de Ministros, o que lhe dá posição de poder considerável, para controlar as decisões políticas. Se o atual governo não boicotar esse poder, o Hizbóllah terá meios para impedir qualquer decisão política que não lhe interesse.

Religioscope – O senhor acredita que os eventos mais recentes encorajaram o movimento, na direção de insistir mais dedicadamente na politica, ou, ao contrário, levou-o a adotar posição mais combativa, estimulada pela "vitória" sobre Israel, como dizem?

Joseph Alagha – Estrategidamente, não creio que se possa dizer que ainda haja qualquer tipo de confrontação direta, bélica, entre o exército de Israel e o Hizbóllah. Há 15 mil soldados libaneses e cerca de 12 mil soldados das forças da ONU, plantadas entre Israel e o Hizbóllah. Nessas condições, já não há combate entre os combatentes do Hizbóllah e os soldados de Israel. Até aqui, a resistência tem sido a razão de ser do movimento. Se esse afastamento entre os dois exércitos for duradouro, se Israel mantiver-se, como hoje, como ameaça distante, o mais provável é que o Hizbóllah dirigirá os seus jihadistas 'para dentro', digamos; que buscará controlar a esfera pública no Líbano.

A questão da luta armada é questão complexa, ligada não apenas à eficácia da resistência, mas à própria definição do Hizbóllah. O movimento sabe disso e, se quiser integrar-se completamente na paisagem política do Líbano, mais cedo ou mais tarde terá de depor as armas. No meu entendimento, o Hizbóllah está tentando ganhar tempo, ainda sem ter definido uma agenda de longo prazo, exceto, sim, o que já está definido: ganhar espaço na esfera pública e na arena política nacional no Líbano.

Religioscope – Na teologia política do Hizbóllah, como vêem o processo democrático? Vêem-no como processo legítimo? Como se podem combinar na mesma agenda o nacionalismo e o reconhecimento dos limites democráticos, e a velayat e-faqih?

Joseph Alagha – Nesse contexto, a velayat e-faqih descreve uma relação subordinada entre o Hizbóllah e o supremo guia da Revolução Islâmica, hoje, Ali Khamenei. Isso não implica subserviência ou subordinação ao governo do Iran como tal. O Imam Khamenei é fundador do Partido de Deus desde os primóridos, quando foi deputado ministro da Defesa ["deputy minister of defence"] no período do Aiatolá Khomeini. Em 1992, Ali Khamenei autorizou e apoiou a participação do Hizbóllah nas eleições (movimento, vale anotar, fortemente desaprovado pela tendência radical no movimento, encabeçada por Subhi Tufayli).

O partido defende princípios democráticos no quadro dos princípios do islamismo, por exemplo, defende o pluralismo político, equivalente ao conceito da Shura, quer dizer "conselho consultivo".

Não há contradição entre alguma espécie reformada de velayat e-faqih e uma sociedade pluralista e multirreligiosa, como a sociedade libanesa. Mas a versão iraniana do mesmo princípio não se aplica ao contexto do Líbano. Enquanto um shaykh [literalmente "um ancião", um "dos mais velhos"] como Subhi Tufayli jamais aceitará a idéia de subordinar-se, no mundo político, a não-muçulmanos, Ali Khamenei e Nasrállah sabem que, se quiserem inserir-se no mundo político libanês e lá manter-se, terão de ceder em alguns pontos.

Os atuais líderes do Hizbóllah já demonstraram que são capazes de fazer concessões, não só no campo político, mas também no campo religioso e sociológico. O recente acampamento que o Hizbóllah[6] organizou e manteve, como ocupação, literalmente, no centro da cidade de Beirute, por exemplo, criou situações que nada têm a ver com as práticas islâmicas como são entendidas no Iran: um acampamento na rua (literalmente), onde viviam cristãos e xiitas e mulheres, umas veladas, outra sem véu, e homens, lado a lado, convivendo e dormindo em barracas próximas, quando não na mesma barraca.

Religioscope – Para reforçar a presença no Líbano e adaptar sua ideologia, mais cedo ou mais tarde o Hizbóllah terá de separar-se do Iran, sua principal fonte de inspiração e de financiamento. O movimento conseguirá fazer isso sem perder ao mesmo tempo a alma e o poder?

Joseph Alagha – Creio que nem o Hizbóllah já tem resposta a essa pergunta. Apesar de todo o compromisso religioso, o movimento 'gostou' de ter alcançado a posição que ocupa hoje na sociedade libanesa. A sobrevivência do movimento não está tão intimamente ligada ao destino do Iran. No Líbano, todos os prédios tem um gerador 'reserva', para conviver com os caprichos do suprimento de eletricidade; o Línano é o gerador 'reserva' do Hizbóllah. Mais do que isso: ao contrário do que dizem alguns observadores, o Hizbóllah não depende completamente do financiamento que recebe do Iran. Como já disse, o movimento tem direito legal de receber os impostos religiosos, sem que passem pelas instituições iranianas. O Partido de Deus estaria muito longe de ficar sem dinheiro, mesmo que o Iran parasse de financiá-lo.

Hizbóllah existe há mais de 25 anos. "O futuro é nosso", para citar Nasrállah e, de um ponto de vista democrático, é provável que tenha razão. Em fala recente, Nasrállah acentuou a idéia de renascimento. Não falou sobre isso no dia em que os muçulmanos comemoram o nascimento do profeta Maomé; esperou a Páscoa. A analogia entre um movimento que renasce depois de anos de luta e a teologia cristã da ressureição não foi casual.

Para responder sua pergunta, em termos bem sintéticos: o Hizbóllah está otimistamente adiando o problema.

Religioscope – Há alguns clérigos xiitas que fazem oposição ao Hizbóllah no Líbano. Por exemplo, para citar alguns, o Mufti de Tiro, Ali al-Amin, ou Shaykh Hani Fahs. Quais são os pontos da divergência com o movimento de Nasrállah?

Joseph Alagha – Além desses dois que você citou, há outros clérigos que têm manifestado desaprovação à política do Hizbóllah. Ali al-Amin, por exemp, tem criticado que o movimento recuse-se a depor armas. Embora não seja protagonista nem personagem muito destacado no cenário libanês, essa oposição causa incômodo no movimento. O Mufti al-Amin é clérigo da alta hierarquia religiosa xiita, o que se manifesta, para o crentes, pelo turbante negro e que significa que é descendente do Profeta. Outra importante figura é Shaykh Mohammad al-Hajj Hassan, nascido no vale do Bekaa. É fundador da União Xiita Livre (ing. Free Shia Union) de Beirute e fala muito e muito frequentemente contra o Hizbóllah, manifestando-se sempre fiel ao Gabinete e chamando atenção para o fato de que o Partido de Deus não representa todos os xiitas libaneses. Mas, o mais importante: Ali al-Amin, Hani Fahs e al-Hajj Hassan têm poucos seguidores, na comunidade xiita. Juntos, representam de 2 a 5% dos xiitas libaneses e não tem peso suficiente para competir com o Hizbóllah.

Há duas vias para explicar essa oposição. Todos têm ou parentes ou amigos íntimos no movimento de Nasrállah. O fato de que possam manifestar a oposição mostra que Hizbóllah é capaz de conviver com a liberdade de expressão, pelo menos, digamos, 'em casa'. Além disso, não se deve descartar completamente a possibiidade de que essa oposição seja uma espécie de estratagema de relações públicas, organizado pelo próprio Hizbóllah, para demonstrar que o Hizbóllah não silencia os dissidentes. É pouco provável.

Outro cenário possível é que a oposição seja resultado de algum acordo, formal ou informal, entre figuras xiitas e o governo, para enfraquecer ou desacreditar a legitimidade do Hizbóllah. Há, de fato, rumores de que os discursos recentes feitos por Subhi Tufayli – um pregador religioso muito influente entre os xiitas em alguma vilas do Bekaa – teriam sido inspirados por uma proposta que o governo ter-lhe-ia feito, em troca de imunidade. Shaykh Tufayli foi condenado, por brigas entre membros de suas milícias e o exército, em 1998, que resultaram em várias mortes; dentre os mortos, há um tenente e deputado, Shaykh Khudr Tlays, genro de Tufayli.

Religioscope – A participação de mulheres, no Partido de Deus, tem aumentado. Para os padrões islâmicos, isso tornaria o Hizbóllah um partido progressista?

Joseph Alagha – Sim, acho que sim. As mulheres são muito ativas, no Hizbóllah, tanto na estrutura educacional – a maioria das professoras são mulheres –, quanto na imprensa e nas ONGs. As duas esferas nas quais as mulheres são quase ausentes são a política e a esfera militar (ao contrário do modelo iraniano). E a tendência é na direção de integração cada vez maior, das mulheres, no movimento.

Já há uma mulher que participa como membro pleno do Conselho Político, Rima Fakhry[7]. É engenheira agrônoma, formada pela American University de Beirute. A tendência ocidental, de imaginar que o Hizbóllah seja réplica do Iran em solo libanês é completamente errada. Se se visitam as escolas que o movimento mantém, por exemplo, a atmosfera é bastante liberal. As mulheres usam o véu e não usam maquiagem, mas muitas delas falam perfeito inglês e muitas têm grau universitário.

NOTAS:

[1] Sayyid é título honorífico atribuído a homens que são considerados descendentes de Maomé, profeta do islamismo.

[2] Iman é um líder islâmico, quase sempre responsável por uma mesquita e líder comunitário.

[3] É o acordo que pôs fim à guerra civil no Líbano, negociado em Ta'if, na Arábia Saudita, em setembro de 1989 e aprovado no parlamento libanês dia 4/11/1989. Para ler o texto do acordo, ver http://www.al-bab.com/arab/docs/lebanon/taif.htm (em inglês).

[4] A palava Jihad designa "uma luta, mediante vontade pessoal, de se buscar e conquistar a fé perfeita". Ao contrário do que muitos pensam, jihad não significa "Guerra Santa", nome dado pelos Europeus às lutas religiosas na Idade Média (por exemplo: Cruzadas). Aquele que segue a Jihad é conhecido como Mujahid (sobre isso, para informações iniciais, ver http://pt.wikipedia.org/wiki/Jihad)

[5] Ulama [subst. coletivo], "os versados no islamismo, os que possuem a qualidade de "ilm", de "aprender" no mais amplo sentido. Dentre os "ulamā", versados na teoria e na prática das ciências muçulmanas, são escolhidos os professores religiosos da comunidade islâmica – teólogos (mutakallimun), especialistas no texto-lei sagrado (muftis), os juízes (qadis), os professores — e altos funcionários do Estado (ou do poder político) religioso, como o shaikh al-Islām. Em sentido mais limitado, "ulama" pode designar um conselho de homens sábios que controlam o governo num Estado muçulmano" (Enciclopaedia Britannica, em http://www.britannica.com/EBchecked/topic/613126/ulama)

[6] Há boa imagem desse acampamento, no centro de Beirute, em 2/12/2006, em http://www.msnbc.msn.com/id/16006125/

[7] Sobre ela, ver entrevista em http://www.islamonline.net/English/Views/2006/05/article03.shtml

*Entrevista feita com Joseph Alagha em Beirute, em abril de 2007,
publicada em Religioscope, 17/5/2007 -
http://religion.info/english/interviews/article_317.shtml

Joseph Alagha é professor assistente de Estudos Islâmicos da Lebanese American University em Beirute.
É autor de The Shifts in Hizbóllah's Ideology. Religious Ideology,
Political Ideology, and Political Program [2002], 2006 [ed. ampliada], Amsterdam University Press.
Tem artigos publicados em vários jornais e periódicos acadêmicos especializados
(Middle East Report, ORIENT, Studies on Islam, ISIM Review, Sharqiyyat and Soera)

25 anos do MST

Amanhã, 24, comemora-se os 25 anos da existência do MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, na cidade de Sarandi, RS. A festa faz parte do encerramento do 13º Encontro Nacional do Movimento, iniciado no dia 20 de janeiro deste ano.

Nossa admiração e respeito ao MST! Só não desejamos vida longa, uma vez que aguardamos uma solução positiva na distribuição da terra para as famílias que necessitam trabalhar e viver da agricultura.

Sugerimos a leitura da entrevista com dois representantes do MST, realizada em 24/08/08 AQUI e o artigo do Irmão Antonio Cechin e do jurista Jacques Távora Alfonsin para o Instituto Humanitas da Unisinos AQUI.

Cisterna na ocupação

Do blog Cel3uma:

No último final de semana (15, 16 e 17 de janeiro), a comunidade da Ocupação 20 de novembro, formada por famílias integrantes do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM) ergueu uma cisterna de 7 mil litros no terreno de uma antiga Casa de Passagem, abandonada pela Prefeitura de Porto Alegre, no número 1345 da Avenida Padre Cacique.

O aproveitamento da água da chuva armazenada servirá para lavagem de carros e irrigação de um herbário. A ação é resultado do curso "Cidade mais Sustentável Começa Aqui" promovido pelo Casatierra e financiada pelo Núcleo Amigos da Terra Brasil, integrante da Federação Amigos da Terra Internacional, que além da cisterna trabalhou com as famílias a organização de uma horta de plantas medicinais e participou de uma oficina de serigrafia e comunicação popular.


Atividade reuniu comunidade na Ocupação 20 de Novembro

Continue a leitura AQUI.
Texto: Adriano Marcello Santos/caSaTiErra
Fotos: Fernando Campos Costa/Arquivo caSaTiErra

21 de janeiro de 2009

Explodem as ruas, no Egito

Nem sinal de calma nas ruas do Egito, ante a iminência de novos ataques em Gaza

Reem Leila, do Cairo (Al-Ahram, Egito, 15-21/1/2009)
http://weekly.ahram.org.eg/2009/930/eg6.htm

Os acontecimentos em Gaza nas últimas três semanas levaram à rua a população egípcia, numa demonstração de revolta dirigida tanto contra o governo egípcio quanto à agressão israelense à Palestina.

A maior manifestação aconteceu em Alexandria, com milhares de manifestantes que se reuniram na 6ª-feira, depois das orações. Liderados por militantes da Fraternidade Muçulmana, cantaram slogans contra o ataque israelense e contra a cumplicidade do Egito no bloqueio de Gaza. Os manifestantes conclamavam os egípcios a lutar ao lado dos palestinenses. Um dos slogans, repetido incansavelmente nas manifestações durante as últimas semanas, dizia "Onde está o exército? Guerra a Israel!"

No mesmo dia, o Sindicato dos Médicos reuniu-se em assembleia extraordinária, na qual se anunciou que 11 médicos egípcios haviam sido autorizados a entrar em Gaza para auxiliar no socorro aos palestinenses feridos.

"Muitos médicos assinaram declarações assumindo responsabilidade pessoal pelo que lhes aconteça em Gaza, para reforçar o pedido de autorização ao Ministério da Saúde do Egito, sem a qual não poderiam viajar. O Ministério negou inicialmente a autorização, alegando falta de segurança para os médicos em Gaza, mas, depois, concordou" – informou Hamdi El-Sayed, presidente do Sindicato dos Médicos. El-Sayed, que também é presidente da Assembleia Popular (AP) do Comitê de Saúde, disse que os médicos, que viajam como voluntários, conhecem bem a situação em Gaza. "Há 27 médicos egípcios altamente qualificados em Arish – cidade onde houve forte manifestação contra os ataques israelenses –, prontos para viajar a qualquer momento.

No sábado, houve novas manifestações. Milhares de estudantes da Universidade do Cairo protestaram no campus, antes de saírem em passeata pela cidade. Os estudantes queimaram uma enorme bandeira de Israel, cantando cantos religiosos e gritando "guerra a Israel". Houve vários policiais e 60 estudantes feridos, e três ativistas foram presos.

Dia 9/1, em assembleia, os professores condenaram Israel e criticaram o silêncio dos governos árabes. Adel Abdel-Gawad, presidente do Clube de Professores da Universidade do Cairo (Cairo University Teaching Staff Club), disse que os professores assinaram uma petição em que reivindicam o direito de os egípcios lutarem ao lado dos palestinenses, contra Israel. "Também aprovamos um boicote a produtos fabricados em Israel e nos EUA", disse Abdel-Gawad.

Embora a maioria das manifestações tenha sido convocada pela Fraternidade Muçulmana, participaram pessoas de todo o espectro político, inclusive da esquerda secular, sem qualquer conflito com os religiosos islâmicos.

No início da semana grupos da Irmandade Muçulmana entregaram uma carta ao presidente Hosni Mubarak, exigindo que o Egito amplie os trabalhos de assistência e ofereça mais do que "apenas transporte e ajuda humanitária aos feridos". Mohamed El-Beltagui, secretário assistente do bloco parlamentar da Fraternidade Muçulmana tem insistido para que o Egito "dê os primeiros passos na direção de unir os países árabes, para que ponham fim ao holocausto em Gaza".

As manifestações têm mostrado claramente que a Fraternidade Muçulmana pode mobilizar milhares de pessoas quando queira, e o grupo já declarou que as manifestações continuarão.

As dimensões das manifestações populares têm levado os analistas a reavaliar as dimensões e a capacidade de mobilização do grupo.

Amr El-Shobaki, analista político do Centro Al-Ahram de Estudos Políticos e Estratégicos aponta que o governo egípcio tem sido visto, na opinião pública em geral, como cúmplice do bombardeio contra Gaza. Dado que os egípcios não têm muitos meios para manifestar sua indignação contra Israel, o apoio às manifestações da Fraternidade Muçulmana cresce, pode-se dizer, naturalmente. De qualquer modo, disse ele, as manifestações no Cairo têm sido menores do que em outras capitais, reflexo, diz El-Shobaki, "da atmosfera de fraca democracia em que vive o Egito, e do medo de que haja forte repressão pelas forças de segurança".

Os que estão indo à rua, diz ele, são os que culpam o governo egípcio pela tragédia de Gaza.

"Os partidos políticos nada fazem – inclusive o partido que está no poder –, têm fraco desempenho e a população já não confia neles. O único grupo no qual a ira popular pode manifestar-se é a Fraternidade Muçulmana, que é "a força de oposição mais bem organizada e mais ativa, em todo o país."

O Partido Nacional Democrático (NDP), que está no poder, promoveu várias reuniões em todo o país, em solidariedade com o povo palestinense. No domingo, mais de 3.000 pessoas, de Kom Ombo, Nubia e Aswan reuniram-se em manifestação, condenando o Iran, a Síria e o Hizbóllah, além de Israel. As reuniões do NDP defendem as políticas de Mubarak em relação ao conflito de Gaza, e destacam que o Egito enviou 25 milhões (libras egípcias) em donativos, 20 toneladas de ajuda humanitária e abriu a fronteira pra dar passagem a feridos, para que fossem atendidos no Egito.

"Normalmente não apoio as manifestações da Fraternidade Muçulmana, nem me envolvo em política", disse Heba Magdi, estudante universitária. "Mas isso agora é diferente. Dado que ninguém mais faz nada, tenho apoiado os movimentos da Fraternidade. O que está acontecendo em Gaza é horrível demais e o governo não está fazendo o que deve fazer."

O sentimento de Magdi é cada vez mais encontrado na população em geral, no Egito, que acusa o governo de só oferecer "críticas muito leves" à ação de Israel. "A Fraternidade Muçulmana é hoje a única força de oposição que há no Egito, o que a torna perigosamente muito poderosa", diz El-Shobaki.

Para El-Shobaki, a imprensa egípcia é parcialmente responsável por essa situação. Os jornais comprometidos com o governo, diz ele, parecem só se preocupar com os foguetes do Hamás, e com melhorar a imagem do próprio governo. Nenhum jornal manifesta qualquer solidariedade com os palestinenses que estão sendo chacinados em Gaza. "A Fraternidade Muçulmana é a única via que resta para a população que deseje oferecer solidariedade aos palestinenses."

A causa Palestina, que já foi um fator que unia os árabes em geral, e os egípcios em especial, está hoje fraturada.

"As pessoas querem apoiar a Palestina, mas não sabem que Palestina apoiar: a Palestina que elegeu o Hamás ou a Palestina na qual quem governa é o Fatah?" – pergunta o sociólogo Qadri Hefni. "Todos, os partidos políticos e as pessoas, a população em geral, são contrários a Israel e aos ataques contra os palestinenses, mas o governo é contra o Hamás e aliado de Máhmude Abbas. E a Fraternidade Muçulmana apoia o Hamás. As pessoas ficam sem saber o que fazer."

O governo egípcio está numa posição muito precária. O tratado de paz com Israel desmente as alegações anteriores de que o Egito não teve conhecimento prévio dos planos de Israel no ataque contra Gaza, e toda a credibilidade do governo Mubarak está abalada.

Mas Hefni acredita que o governo egípcio fez "esforços tremendos" para deter a agressão contra Gaza, por Israel, apesar de todas as circunstâncias.

"Não podemos fazer mais do que já fizemos. Temos muitos problemas domésticos. Esses que gritam que os egípcios devem atacar Israel, que vão e lutem para defender Gaza, em vez de perturbar a ordem pública e gritar slogans vazios."

Enquanto o número de mortos em Gaza não pára de aumentar, aumenta também a revolta nas ruas no Egito e em todo o mundo árabe.
Tradução: Caia Fittipaldi

20 de janeiro de 2009

Kayser

A mídia em Israel


Como vender guerra 'ética' e violar também os direitos civis dos israelenses
O gerenciamento da mídia em Israel não é só impressionante: é aterrorizante

Neve Gordon, Counterpunch, 16-18/1/2009
http://www.counterpunch.org/gordon01162009.html

Neve Gordon é chefe do departamento de Política & Governo,
na Ben-Gurion University do Negev e autor de
Israel's Occupation (University of California Press, 2008).

Um dos meus alunos foi preso ontem e passou a noite na cadeia. O crime de R. foi protestar contra o ataque de Israel contra Gaza. Foi juntado a outros mais de 700 israelenses que foram detidos desde o início desse cruel ataque a Gaza: cerca de 230 (pelas mais recentes estimativas) continuam presos. No contexto israelense, essa estratégia para impedir qualquer protesto e qualquer tipo de resistência é novidade, e impressiona que a mídia internacional não veja aí qualquer assunto a noticiar.

Simultaneamente, a mídia em Israel serve o governo, em tal grau de servilismo, que nenhuma crítica à guerra foi ouvida em nenhum dos três canais de televisão locais. De fato, a situação é tão absurda, que repórteres e âncoras são até menos críticos do que os porta-vozes militares.

Na total ausência de qualquer análise crítica nos jornais e televisões, não surpreende que 78% dos israelenses, ou cerca de 98% de todos os judeus israelenses, apoiem a guerra.

E esconder todas as vozes críticas não é o único modo pelo qual garantir apoio à guerra. Inventar argumentação lógica também ajuda.

Um dos modos pelos quais a mídia, o exército e o governo de Israel têm convencido os israelenses a manifestarem-se a favor da carnificina é 'declarar' que Israel luta uma guerra moral contra o Hamás. A lógica, como Eyal Weizman observou em seu livro "Hollow Land" [Terra oca], é a lógica "da moderação" (Israel seria moderado, no sentido de auto-regulado, autocontido, equilibrado, ponderado).

Para destacar a política "da moderação", a mídia aprofunda o abismo que separa o que o exército de Israel tem poder para fazer contra os palestinenses e o que efetivamente fez e faz. Aqui, alguns poucos exemplos dos slogans que se ouvem todos os dias, nos noticiários:

• Os jatos de Israel podem bombardear casas, sem qualquer aviso; mas o exército emite avisos – por telefone, acredite quem quiser – prevenindo os moradores de que têm 10 minutos para evacuar as casas que serão destruídas. O subtexto é aterrorizante: o exérctio pode destruir casas e matar civis dentro de suas casas, sem aviso; só não o faz (?) porque é exército humano e respeita os valores da vida humana.

• Israel condena o uso de bombas de fragmentação ["teaser bombs"] – aquelas que matam pessoas, mas não destróem casas –, o que não impede que minutos depois dispare mísseis letais; outra vez, para mostrar que o exército poderia matar muito mais palestinenses; não mata (?) porque não quer.

• Israel sabe que os líderes do Hamás estão escondidos no hospital al-Shifa. Assim o exército 'declara' que só não reduz o hospital a ruínas, sem deixar em pé uma única parede, porque não quer; quisesse, faria.

• Por causa da crise humanitária, o exército de Israel suspende os ataques durante algumas horas por dia e permite que comboios humanitários entrem na Faixa de Gaza. Outra vez, o que não se diz é que, se quisesse, Israel impediria a entrada de socorro humanitário.

A mensagem veiculada nessas frases repetidas incansavelmente tem dois significados, conforme o público-alvo.

Para os palestinenses, a mensagem é uma clara ameaça: a qualquer momento, Israel pode decidir 'desmoderar-se' e, assim, permanece sobre todos a ameaça de novos ataques e de ataques cada vez mais violentos.

Independente de o quanto já sejam letais, hoje, os ataques israelenses, a idéia é manter a população palestinense em estado de pânico, sempre à espera de ataques ainda mais brutais. Assim, a violência permanece sempre ativada, quando há ataques e quando não há, durante os combates e durante o cessar-fogo.

Para os israelenses, a mensagem visa o campo moral. Os generais poderiam, se quisessem, disparar sobre a Palestina todo um imensíssimo arsenal de morte e violência; mas, não, preferem não o fazer, porque, diferente do Hamás, o exército de Israel respeita vidas humanas.

Essa última idéia parece ecoar consideravelmente na sociedade de Israel. E baseia-se numa falácia moral.

O fato de que alguém mais brutal escolha não ser totalmente brutal não implica que o brutal seja moral.

O fato de o exército de Israel poder destruir toda a Faixa de Gaza, mas ter destruído 'apenas' 15% dos prédios, não torna moral a chacina.

O fato de o exército de Isral poder matar milhares de crianças palestinenses, mas matado 'apenas' 300, não torna ética a Operação 'Cast Lead'.

Em resumo, a falsa moralidade que o exército e o governo de Israel têm reivindicado, como justificativa para suas ações na chacina de Gaza é falsa moralidade, é moralidade oca, é amoralidade.

Esse tipo de discurso revela que Israel não é capaz, ainda, de enfrentar a fonte original da violência essencial, em Israel. Essa violência não vem do Hamás. Essa violência vem da ocupação da Faixa de Gaza, da Cisjordânia e de Jerusalém Leste.

Meu aluno, R., e outros israelenses que protestam contra a chacina de Gaza parecem já ter entendido essa verdade evidente. Para impedir que eles falem e que essa verdade evidente 'alastre-se', o governo israelense viola também os direitos civis de seus cidadãos. E os mete na cadeia.

Tradução: Caia Fittipaldi

O comandante-em-chefe enlouquceu


Por Uri Avnery, 17/1/2009


169 antes da guerra de Gaza, Heinrich Heine escreveu 12 versos premonitórios, sob o título de “An Edom” [para Edom]. O poeta judeu-alemão falava da Alemanha ou, talvez de todas as nações da Europa cristã. Escreveu o seguinte (aqui, em tradução precária[1]):

“Por mil anos e mais / vivemos um pacto / Você me deixou respirar / Eu deixei sua loucura crescer // Às vezes, quando os dias são mais escuros / Você é tomado de desejos estranhos / E pinta as garras / Com o sangue da vida das minhas veias // Hoje nossa amizade é firme / Cada dia mais forte, dia a dia / Porque sua loucura já ruge em mim / Eu, cada dia mais, à sua imagem.”

O sionismo, que surgiu cerca de 50 anos depois de esses versos terem sido escritos, realizou plenamente essa profecia. Os israelenses nos tornamos nação idêntica a outras, e a memória do Holocausto, de tempos em tempos, nos faz agir como as piores nações. Poucos israelenses conhecem esses versos de Heine, mas Israel, como país, é encarnação deles.

Nessa guerra, políticos e generais têm repetido que "o dono da barraca enlouqueceu", como gritam os feirantes, no sentido de "o dono da barraca enlouqueceu e está distribuindo tomates de graça." Mas ao longo do tempo algo foi acontecendo e converteu-se em doutrina mortal que muito seguidamente aparece no discurso público, em Israel: para deter os inimigos de Israel, Israel terá de agir como louco, sem limite, matar e destruir o mais possível, sem limite, sem piedade.

Nessa guerra, a loucura tornou-se dogma político e militar: só se Israel matar a maior quantidade possível de "eles", mil "eles" para cada dez "dos nossos", então "eles" entenderão que não vale a pena meter-se "com Israel". "Tem de entrar na consciência deles..." – é frase que se ouve muito, hoje em Israel. Daqui em diante, "eles" pensarão duas vezes antes de agredir Israel com Qassams, mesmo que em reação... ao que Israel faça a "eles", seja lá o que for.

É impossível avaliar o quanto há de vicioso nessa guerra, sem pensar no contexto histórico: o sentimento de vitimismo, depois de tudo que os judeus sofreram ao longo dos anos, e a convicção de que, depois do Holocausto, os judeus teriam algum direito de fazer qualquer coisa, qualquer coisa, absolutamente qualquer coisa, para defenderem-se, sem peias, sem limites nem legais nem morais.

Quando estava no auge a matança e a destruição em Gaza, aconteceu algo, nos distantes EUA, que nada teve a ver diretamente com a guerra, mas, ao mesmo tempo, é muito intimamente conectado com ela.

O filme israelense “Waltz with Bashir[2] recebeu um importante prêmio internacional. Os jornais, em Israel, festejaram o prêmio com orgulho, tanto quanto atentamente não ofereceram nenhuma informação sobre o filme. Só até aí, já foi fenômeno interessante: saudou-se o sucesso de um filme, tanto quanto não se informou sobre o tema do filme.

"Waltz with Bashir" é um importante filme-documentário-animação sobre um dos capítulos mais negros da história de Israel: o massacre de Sabra e Chatila. Durante a I Guerra do Líbano, uma milícia de libaneses cristãos, sob os auspícios do exército de Israel, massacrou centenas de refugiados palestinenses, encurralados num campo de refugiados, homens, mulheres, crianças e velhos. O filme narra essa atrocidade com acuidade meticulosa, sem omitir a participação de israelenses.

Nada disso se leu nos jornais de Israel, no noticiário sobre o prêmio. Na cerimônia de premiação o diretor do filme protestou contra o massacre de Gaza. Não se sabe exatamente quantas mulheres e crianças estavam sendo assassinadas no momento em que acontecia a cerimônia – mas não há dúvidas de que o massacre em Gaza foi ainda mais terrível que o de 1982. Naquela ocasião, 400 mil israelenses saíram de casa e protestaram, nas ruas, em protesto espontâneo, que ninguém convocou, em Telavive. Hoje, apenas 10 mil israelenses têm ido às ruas, quase diariamente, para protestar contra a matança em Gaza.

A comissão oficial de investigação do governo israelense que investigou os eventos do massacre de Sabra declarou que "Israel foi indiretamente responsável" pela atrocidade. Vários altos funcionários e oficiais foram suspensos. Entre eles, um comandante-de-divisão, Amos Yaron. Nenhum dos demais indiciados, do ministro da Defesa, Ariel Sharon, ao chefe do estado-maior, Rafael Eitan, jamais manifestou uma palavra de arrependimento, mas Yaron expressou algum remorso, em discurso aos seus comandados, e admitiu: "nossa sensibilidade estava obnubilada".

Muitas sensibilidades continuam muito evidentemente obnubiladas, na guerra de Gaza.

A primeira guerra do Líbano durou quase 18 anos[3] e morreram mais de 500 soldados israelenses. Os arquitetos da segunda guerra do Líbano decidiram que a guerra seria mais curta, com menos israelenses mortos. Inventaram o princípio do "comandante louco": destruir tudo, vilas, cidades, devastação total, destruir, até reduzir a ruínas a chamada "infra-estrutura". Em 33 dias de guerra, já havia 1.000 libaneses mortos, praticamente todos civis – recorde que já foi batido em Gaza, no 17º dia.

Mesmo assim, houve muitas baixas, no exército de Israel, nos combates diretos; e a opinião pública que, então, de início, apoiara a segunda guerra tanto quanto apoiara a primeira, rapidamente mudou de direção.

Dessa vez, pairam sobre a guerra de Gaza os fumos da segunda guerra do Líbano. Em Israel, todos juraram que haviam aprendido as lições daquela guerra. Mas a principal lição que a segunda guerra do Líbano ensinou a Israel foi: não arriscar a vida de nenhum soldado. Uma guerra sem israelenses mortos. Como fazer? Usar um descomunal poder de fogo para pulverizar o que quer que haja, matar tudo que se mova, no campo de visão de... qualquer um. Matar. Matar os combatentes adversários e, também todos os seres humanos que haja à vista e que representem qualquer tipo de ameaça – mesmo que esteja identificado como médico ou como enfermeiro, mesmo que esteja dirigindo uma ambulância, mesmo que seja motorista de um caminhão que carrega comida. Destruir todos os prédios de dentro dos quais alguém possa, presumivelmente, atacar algum soldado israelense – mesmo que seja uma escola cheia de refugiados, doentes e feridos. Bombardear, com canhões e granadas todos os prédios, casas, mesquitas, escolas, comboios da ONU, até ruínas de túmulos onde tenham sido enterrados os mortos de ontem.

A mídia israelense devotou horas de atenção a um foguete Qassam que caiu sobre uma casa em Ashkelon, cujos três moradores levaram um susto, e alguns segundos às 40 mulheres e crianças assassinadas numa escola da ONU. As sobreviventes declararam que "atiraram contra nós a queima-roupa" – frase que a mídia em Israel imediatamente desqualificou como "evidente mentira".

O poder de fogo foi usado para semear o terror – bombardear tudo, de um hospital a um armazém da ONU em que se guardava comida para distribuição e mesquitas. O pretexto? O de sempre: "os soldados israelenses foram atacados".

Nada disso aconteceria, se toda a Israel já não estivesse com "a sensibilidade obnubilada". Os israelenses já não se chocam ante a imagem de um bebê mutilado, ou ao saber que crianças passaram dias ao lado do cadáver da mãe, porque soldados israelenses impediam que saíssem das ruínas de sua casa. Ninguém se importa: nem os soldados, nem os pilotos, nem os jornalistas, nem os políticos, nem os generais.

A insanidade moral contaminou todos os israelenses. O principal agente da contaminação, expoente nacional da insanidade moral em Israel, é Ehud Barak. De fato, já está sendo derrotado, em quociente de insanidade moral por Tzipi Livni, que sorriu, na televisão, ao falar desses eventos horripilantes. Nem Heinrich Heine poderia ter imaginado tudo isso.

Os últimos dias foram dominados pelo "efeito Obama”.

Estamos num avião e, de repente, aparece à frente uma enorme montanha, num vazio entre as nuvens. Na cabine, pânico: como evitar a colisão?

Quem planejou a guerra escolheu cuidadosamente o timing: nos feriados de fim de ano, todos fora de suas bases, e Bush ainda por aí. Parecem tem esquecido que, dia 20/1, Obama assumirá a Casa Branca.

Essa data, agora, lança uma sombra de pressa sobre todos. O Barak israelense sabe que, se o Barak norte-americano se zangar, é desastre na certa. Conclusão: os horrores em Gaza têm de cessar antes da posse de Obama. Essa semana, esse é o único fato a ser considerado em todas as decisões políticas e militares. Esqueçam "os foguetes", esqueçam "a vitória", esqueçam "quebrar o Hamás".

Com o cessar-fogo, surgirá a questão de decidir quem ganhou, quem perdeu.

Em Israel, só se fala sobre "o quadro da vitória" – não sobre alguma vitória; só se fala sobre "o quadro". A metáfora é essencialmente importante, para convencer a opinião pública israelense de que foi bom negócio. Nesse momento, todos, milhares de jornalistas, até o menor deles, estão mobilizados para a missão de pintar o tal "quadro".

Os líderes israelenses rugirão a propósito de duas "realizações": o fim dos foguetes e o fechamento da fronteira Gaza-Egito (também chamado "corredor Filadelfo"). Os foguetes poderiam ter sido controlados sem essa guerra assassina, se o governo de Israel tivesse concordado em negociar com o Hamás, depois de o partido ter sido eleito na Palestina. Os túneis nem teriam sido escavados, antes de tudo, se o governo israelense não tivesse imposto o bloqueio mortal, na Faixa de Gaza.

Mas o principal sucesso de que se vangloriarão os senhores-da-guerra em Israel é, ao mesmo tempo, o 'sucesso' da selvageria e da barbárie impressas no próprio projeto de guerra: as atrocidades, do ponto de vista deles, terão "efeito de contenção"; e esse efeito, crêem eles, perdurará por muito tempo.

O Hamás dirá que obteve imensa vitória; que a evidência de que sobreviveram em luta contra a gigante Israel e sua máquina de guerra é, só ela, vitória; um pequeno Davi contra o gigante Golias. É vitória. Nos termos das definições clássicas, exército vencedor é o que continua no campo de batalha, depois da batalha. O Hamás lá está. O governo do Hamás continua vivo na Faixa de Gaza, contra toda a guerra que foi feita para eliminá-lo. É feito significativo.

O Hamás dirá também que o exército de Israel não ocupou facilmente as cidades da Palestina onde havia combatentes do Hamás. É verdade. O exército já informou o governo de que tomar a cidade de Gaza custará a vida de cerca de 200 soldados; ninguém aceitará pagar esse preço, às vésperas das eleições.

Evidente verdade é, também, que uma força de guerrilheiros, alguns milhares de combatentes armados só com armas leves, lutou durante longas semanas contra um dos mais poderosos exércitos do mundo e que, em vários sentidos, conseguiu, sim, deter-lhe o avanço. Isso será visto por milhões de palestinenses e por todos os árabes e muçulmanos – e não só por esses – como vitória importantíssima.

No final, haverá alguma espécie de acordo, que incluirá os termos óbvios. Nenhum país admitiria que seus cidadãos vivam expostos a foguetes disparados de fora das fronteiras. Nenhuma população admitiria viver para sempre sob bloqueio desumano. Então, (1) o Hamás terá de desistir dos foguetes; (2) Israel terá de abrir os pontos de passagem entre a Faixa de Gaza e o resto do mundo; e (3) terá fim a entrada de armas para a Faixa (na medida do possível), como Israel pede. Chegar-se-ia ao mesmo resultado, sem guerra, se o governo de Israel não tivesse boicotado o Hamás.

Seja como for, os piores resultados dessa guerra já são visíveis e continuarão visíveis por muitos anos: Israel imprimiu terrível imagem dela própria na consciência do mundo.

Bilhões de pessoas viram os israelenses como bestas-feras, de dentes pingando sangue. Nunca mais voltarão a ver Israel como Estado que busca paz, progresso e justiça. A Declaração de Independência norte-americana fala com aprovação e recomenda "respeito decente às opiniões da humanidade". É sábio princípio.

Ainda pior é o impacto sobre as centenas de milhões de árabes que cercam Israel nessa parte do mundo: verão os combatentes do Hamás como heróis da nação árabe e, além disso, também verão seus próprios governos nacionais em plena nudez, como são: criminosos, venais, corruptos e traiçoeiros.

A derrota dos árabes na guerra de 1948 determinou, quase como consequência imediata, a queda dos regimes árabes de então e a ascensão de uma nova geração de líderes nacionalistas. De Gamal Abd-al-Nasser, por exemplo. A guerra de 2009 pode determinar a queda da atual safra de governantes árabes e a ascensão de uma nova geração de líderes – e podem ser fundamentalistas islâmicos que odeiam Israel e o ocidente.

Nos próximos anos, todos verão com clareza a absoluta loucura que foi a guerra de Gaza. O comandante-em-chefe enlouqueceu – no sentido literal das palavras.


* URI AVNERY, 17/1/2009, "The Boss Has Gone Mad", em Gush Shalom [Grupo da Paz], em http://zope.gush-shalom.org/home/en/channels/avnery/1232152100/. Tradução de Caia Fittipaldi, autorizada pelo autor.

[1] Em tradução de John Paine (em http://oldpoetry.com/opoem/65323-Heinrich-Heine-To-Edom-), do alemão para o inglês: "WITH each other, brother fashion, / Have we borne this many an age. / Thou hast borne with my existence, / And I borne have with thy rage. / Many a time, in days of darkness, / Wonder-strange hath been thy mood, / And thy dear and pious talons / Hast thou reddened in my blood. // Now our friendship groweth closer; / Nay, it waxeth daily now: / I myself begin to bluster / And am nigh as mad as thou."

[2] Sobre o filme-documentário-animação, há informação em http://cinematograficamentefalando.blogs.sapo.pt/323351.html

[3] Oficialmente, durou de 1975 a 1990, com períodos de trégua. Sobre isso, ver http://i-cias.com/e.o/leb_civ_war.htm